GIOTTO: PINTURA E MODERNIDADE

GIOTTO: PINTURA E MODERNIDADE

Luís Rodolfo de Souza Dantas


Definições e classificações pertinentes ao vocábulo “moderno” e dos conceitos nele integrados resultam em entendimentos por demais diversos e frequentemente antagônicos. No entanto, qualquer que seja a situação em que apareça, carrega consigo a noção de consciência do presente como momento de substancial distinção em relação aos períodos anteriores, “distinção esta que tanto pode ser de notável desenvolvimento como de ruptura radical com o passado”, como precisamente ensinou Philadelpho Menezes em sua obra A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade”.  O criador do movimento Intersignos prossegue revelando que a palavra moderno na sua forma latina modernu foi empregada pela primeira vez no fim do século V para distinguir o presente tornado cristão do passado romano e pagão.
Outra época em que surge com força a tensão entre antigos e modernos coincidirá com a passagem do século XIII, com a introdução da Filosofia Aristotélica na Universidade, então instituição fomentada e gerida pela Igreja Católica. No fim do século XIX, o termo forjado por Baudelaire ganhou espaço (“moderno” será a palavra definidora do século XX). Para nos valermos de acepção mais precisa, no século XIV aparecem movimentos que se opõem decisivamente ao velho (ao velho apenas passado) e se propõem eles próprios e as suas obras como modernos.
De outra banda, Vasari propôs adotar a expressão “moderno” para distinguir a arte de seu tempo do estilo antiquado medieval e do clássico da Antiguidade. Moderno então, pontua Philadelpho, torna-se sinônimo de estilo renascentista contraposto ao precedente: sinônimo de “boa maneira antiga renovada”. Ressalto que o período de decisivas e intensas mudanças relaciona-se a interpretações de difíceis separações em estágios evolutivos lineares e estanques. De fato, não é difícil ver ainda na Baixa Idade Média diversos elementos que prefiguram a aparição da consciência de modernidade renascentista. Por sinal, no fim do século XIII, como acrescenta Maldonado, “a ciência, a retomada dos estudos históricos, a imitação dos antigos com método de conhecimento, sufragada pela obra de tradução, foram assim os elementos principais de uma consciência crítica e autocrítica”.
Arnold Hauser ensina que “a melhor maneira de perceber o que há de arbitrário na usual distinção entre Idade Média e a Idade Moderna é notar o quanto é fluida a expressão “renascença”. Ademais, a dificuldade em identificar em uma ou outra dessas pessoas os atributos renascentistas  (Petrarca e Boccaccio, Gentile da Fabriano e Pisanello, Jean Fouquet e Jan Van Eyck). Dante e Giotto, por sinal, podem ser assegurados como pertencentes à Renascença, assim como Shakespeare e Moliere à Idade Média.
O que deve ser frisado, para que o título deste artigo não pareça sem sentido, “é que modernidade se refere então não a um período de tempo delimitado que dá o caráter de moderno indistintamente a tudo aquilo que se produz no seu interior. Entende-se o termo não como ‘época’, mas como um ‘modo’ (como sublinha a origem latina do termo) próprio do pensamento, da enunciação, da sensibilidade”, como postula Lyotard e que, portanto, pode ser entendido para abarcar até mesmo uma época anterior ao surgimento do termo, que se dá, conforme indicado, com Baudelaire.
Sem abandonar a concepção baudeleriana, que de qualquer forma está tingida por uma leitura da sociedade da sua época, projetamos hermeneuticamente retroativa e evolutivamente este conceito na passagem da Idade Média ao Renascimento, quando o mesmo conflito entre tradição e inovação se colocava de maneira radical, produzindo um desabrochar da noção de história e de presente.
Conflito patente na obra do artista-pensador Giotto, que não é considerado o pai da nova pintura propalada por Vasari apenas por valorizar certos procedimentos que mais adiante seriam radicalmente incorporados e levados às últimas consequências pelos artistas posteriores. O que ocorre com Giotto liga-se tão-somente a um conflito de seu estilo com a rigidez e artificialismo da arte bizantina. 
A tensão maior pode ser percebida na conflituosidade e rupturas entre suas ideias estéticas com as de seus antecessores. Ao conservadorismo bizantino, Giotto contrapôs a ilusão de profundidade, o movimento, a dramaticidade, presentificando os gestos e atitudes dos santos e personagens bíblicos, como se os acontecimentos transcorressem no instante que o espectador estivesse lendo a obra. 
É fato: Giotto não se conformava com os santos terem sempre “caras de santos”. Julgava que antes de atingir a santificação, todos haviam sido homens de carne, ossos, alma e espírito. Destarte, pelo que compreendemos, achava fundamental representar os traços desta humanidade nos quadros.
Tais elementos constituem os propalados “valores táteis” de Giotto, sinônimos de terceira dimensão e pintura volumétrica. Estes fatores, sempre associados à clareza e à simplicidade, à lógica e à precisão, comumente são comparados com a espécie ulterior e mais frívola, mais trivial, de naturalismo e, conforme registra Hauser, "nos levam a fechar os olhos para o tremendo progresso que significou sua arte na representação direta das coisas, até que extrema condição histórico-cultural ele foi capaz de descrever pictoricamente, com suprema clareza, aquilo que até então tinha sido impossível na experiência pictórica".
Ao avançarmos nas conjecturas de Vasari, veremos que no seu entendimento a representação realiza-se mediante a "imitação da natureza", que implicaria no conceito de uma realidade preexistente que o artista deveria procurar imitar à perfeição para adequar com sua obra uma verdade previamente admitida (Carlo Carrá). Se fôssemos defender esta ideia, certamente acabaríamos por julgar a obra de Giotto imatura e deficiente. E não foi outro o juízo que se deu em relação a esta obra pela ótica de artistas de tempos seguintes.
Rotulado de "preparador do Renascimento italiano", Giotto acabou por ser evitado por artistas da Renascença ao ser por vezes identificado enquanto pintor imperfeito, ao não ter levado a cabo os fundamentos da perspectiva, ao ser incompreendido talvez pelas vicissitudes da distância cultural/temporal.
 De fato, a crítica de Arte Clássica e, com mais estreiteza, Neo-Clássica, tomaram a obediência à perspectiva como critério regulador da correção pictórica. "Um quadro pintado fará das leis da perspectiva geométrica seria um quadro errado." (Alfredo Bosi). É claro que tal questão só tem pertinência quando encarada apenas sob o crivo histórico formal, em nenhum momento tendo o condão de negar a extrema beleza da pintura giottesca.
Além do mais, se Giotto havia composto de forma menos eficiente em termos de profundidade, melhor havia composto em superfície, e se o senso anatômico era nele menos preciso do que nos artitas dos séculos XV e XV, melhor havia composto em senso geométrico as suas imagens grandiosas, parafraseando Carlos Carrá.
Resolvendo um tanto as complicações advindas da aplicação da expressão “imitação da natureza” à obra de Giotto proposta por Vasari, Carlos Carrá expõe o conceito de “identificação da natureza”, que nos parece bastante pertinente. Primeiro, por poder acentuar o caráter original de Giotto, evitando-se leituras cientificistas de sua obra, que certamente acabam por obscurecê-la através de parâmetros puramente técnicos.  Em segundo lugar, por abranger a noção de abstração na obra de Giotto, em contraste com a “perfeição mecânica e objetiva” professada por Vasari.
Assim se expressa Carrá em seu texto de 1924: “Mas por  qual razão  nós rejeitamos o princípio vasariano   de “imitação da natureza”? Primeiro  de tudo, porque ao conceito de imitação nós opomos o de “identificação” com as coisas. “ Desta forma, segundo ele, tal identificação teria levado Giotto a libertar-se da maneira bizantina quase que totalmente. Carrá continua a defender este conceito e expressa que, para compreender a obra giottesca, faz-se necessário refutar o conceito vasariano de perfeição mecânica e objetiva, a partir da abstração, sem o qual não se entenderia a forte coloração transcendental manifesta na pintura de Giotto.
Entendemos que esta abstração não deixa de ter correlação com algo do caráter bizantino presente na obra do artista. Presença mitigada e transfigurada porém revelada nos aspectos mítico-simbólicos da arte do discípulo de Cimabue. Na arte bizantina as figuras se dispunham segundo razões simbólicas, sem qualquer cuidado de realismo anatômico. 
Em Giotto inexiste a compressão de figuras como na arte Bizantina. Pelo contrário,perceptível é o realismo destas no tocante à disposição no espaço,  o aspecto simbólico plenamente ressaltado através dos recursos cênicos empregados pelo artista.
A paisagem de Giotto, como se observa, nunca expressa a realidade. É sempre artificiosa, teatral, como se servisse de pano de fundo para o transcorrer da trama de natureza mítico-religiosa. Ademais, as figuras, por mais fiéis que sejam no tocante aos tipos humanos, sempre guardam um caráter dúbio entre o terreno e o não terreno, aspecto este que é valorizado pela precariedade da representação anatômica.
Sabemos que são pessoas de carne e osso que se encontram a nossa frente transmitindo toda a gama de emoções possíveis naquele determinado contexto. Sentimos com elas o martírio, os sofrimentos, as revelações narradas, compartilhamos com elas certa momentânea transcendência... Há vitalidade, uma excitação estampada na obra de Giotto, que ao mesmo tempo que aponta a origem humana das personagens, faz ressaltar a constatação de estarmos testemunhando relatos permeados de ascese religiosa.
O ver-pensar giottesco é o primeiro elemento a se indicar na configuração de sua específica modernidade. A descrição clara dos acontecimentos certamente guarda direta relação com os valores racionalizantes que impregnavam a sociedade Fiorentina da época, e a ele não escapavam as influências de uma visão de mundo plural e humanística (seu pensamento certamente estava impregnado da necessidade de ser sua obra a mais objetiva possível (narrativamente)ao estar direcionada a homens de uma sociedade que estava, face aos novos contextos científicos, econômicos e culturais de então, a privilegiar um discurso mais direto da mensagem religiosa, que não necessitasse, toda vez que fosse absorvida, de estados de outros estados de contrição do corpo e ideia menos eficazes à circulação de determinadas mensagens religiosas.
Mas este ver-pensar de Giotto se revela mais amplamente na consciência que tinha do presente com instante de substancial distinção em relação às tradições  precedentes (grega, bizantina, etrusca) destituindo-se totalmente de umas, ou adaptando e transfigurando outras a sua visão de mundo - Giotto também acabou por contrastar com o cientificismo esterilizante dos artistas posteriores da Renascimento, traduzindo potencializada por pseudo- primitivismo expresso nas representações produzidas, avanços nítidos em busca de superação de paradigmas estéticos.
 Da mesma forma que nosso artista não se conformava com o fato dos santos terem sempre cara de santo, dando-lhe gestos, condutas, posturas humanas, somos arrebatados quando percebemos que um homem de carne e osso também se revela humaníssimo a partir de sua obra, o que não ocorre quando nos confrontamos com os artistas renascentistas de séculos depois. Ainda há arrebatamento e empatia quando apreciamos este beijo giottesco (tantos beijos absorvidos e absortos em cromáticas camadas):




Baudelaire, séculos mais tarde, advertia os realistas de tendência naturalista de que não bastaria olhar o mundo e reproduzi-lo fielmente: “À força de contemplar eles se esquecem de sentir e pensar”, disse. O mesmo poderia ser afirmado em relação a determinados artistas da Renascença, ao desconsiderarem a obra de Giotto por esta não estampar à risca o cânone do perspectivismo em função estética reducionista ou centralizadora, por exemplo.
Ver, sentir, pensar. Giotto reuniu as três experiências, realizando uma obra cuja intensidade até hoje ramifica-se em decisivas influências, legando lições que são autênticos paradigmas para a pintura dos séculos seguintes. No dizer de Carrá, “A sua pintura é produto da potência transfiguradora do artista, e a sua técnica sem arrependimentos demonstra a admirável facilidade com qual trabalhava” (...) “Giotto introduz uma estética absolutamente nova e as dificuldades que ele superou para realizá-la plenamente, com o grau de potência utilizado, constitui o problema fundamental da pintura de todos os tempos, e dão a extensão do vigor de seu gênio”.

Luís Rodolfo de Souza Dantas
São Paulo, abril de 1996.
















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