FORMAS DE RACIONALIDADE: LÓGICA, DIALÉTICA, RETÓRICA E POÉTICA







Boa tarde a todos! Quero primeiramente agradecer o honroso convite para estar com vocês nesta tarde na pessoa do Prof. Djalma Medeiros. De início, registro que o título de minha exposição encerra uma problemática das mais agudas, em vista da polissemia que o vocábulo ‘razão’ encerra. Para os fins desta palestra, fixemos que esta expressão condiz com o objeto próprio da Lógica, aqui definida como ‘ciência da razão’. Refere-se, inclusive, à razão tomada na acepção clássica de faculdade e, mais precisamente, faculdade de conceber, julgar e raciocinar. Por sinal, é neste sentido que a razão é quase que universalmente considerada como aquilo que é próprio do ser humano. Por ora, destaquemos a lição de Cícero, extraída de seu De legibus, I, 10; 30:[1]

Isso é prova suficiente de que não há diferença na espécie, pois, se estivesse lá, uma única definição não incluiria todos. Além disso, a razão, com a qual diferimos dos brutos, por meio dos quais podemos conjecturar, argumentar, contra-argumentar, discutir, realizar qualquer coisa, é certamente comum a todos os homens, diferente por constituição, mas igual em termos de capacidade de aprender. De fato, os objetos de uma maneira idêntica para todos, são apreendidos pelos sentidos, e aquelas coisas que afetam os sentidos, da mesma forma estimulam os sentidos de todos; além disso, essas noções iniciais, das quais já falei e que estão impressas nas mentes, são igualmente impressas em todos. Finalmente, a linguagem, intérprete do intelecto, difere no que diz respeito às palavras, mas concorda em conceitos; nem existe alguém entre indivíduos que, uma vez assumida a natureza como guia, não possa alcançar a virtude.

Em Cícero tomamos contato com uma acepção de razão que faz ecoar aquela que pode ser depreendida do Órganon de Aristóteles, tratado de Lógica do estagirita que, mesmo não tendo sido por ele consolidado, permite detectar o quanto este filósofo é de fundamental relevância posto ter sido aquele que provavelmente mais ampla e sistematicamente contribuiu para a exploração dos diversos sentidos de ‘logos’ (em grego λόγος, do grego λέγω [légō], "Eu digo"), mormente em sua configuração analítica (ou lógica).

De fato, todas as obras que traduzem as formas aristotélicas de racionalidade – integradas ou não ao Órganon – estavam praticamente desaparecidas, como as demais de Aristóteles, até o século I a. C., quando Andrônico de Rodes promove então uma sistematização e uma edição de conjunto, pelas quais se baseiam até os dias correntes nossos conhecimentos sobre grande parte da obra aristotélica. Na condição de editor póstumo, Andrônico precisou ordenar os manuscritos, tomando como fundamento desta ordem o critério da divisão das ciências em introdutórias (ou lógicas), teoréticas, práticas e técnicas (ou poéticas), divisão esta do próprio Aristóteles. Andrônico agrupou os manuscritos nas quatro divisões, inserindo no rótulo de técnicas as obras Retórica e Poética, dissociando-as das demais obras de natureza lógica ou metodológica, que foram compor a unidade aparentemente fechada do Órganon, conjunto das obras lógicas ou introdutórias.

Nesta esteira, por mais que a leitura do Órganon não nos afaste do reconhecimento do quanto Aristóteles deu importância ao modelo dedutivo de inferência – o que certamente exige uma distinção entre as tipologias silogísticas empregadas e distinguidas por ele em seus trabalhos - não parece exagero afirmar, tendo em vista, sobretudo, algo nitidamente perceptível a partir de fins dos anos 50 e início dos anos 60 do século passado, face ao que produziram destacados especialistas em pensamento aristotélico, que teria Aristóteles teorizado e também praticado toda uma série de procedimentos racionais, ou seja, segundo palavras de Enrico Berti: “(...) de ‘formas de racionalidade’, não redutíveis à lógica dedutiva, e que aqueles (procedimentos), não esta, constituíam seu verdadeiro ‘método’.”

E prossegue o autor de As razões de Aristóteles [2]:

A importância do fenômeno foi confirmada e acrescida pela publicação, nos anos imediatamente posteriores [3], de alguns grandes livros sobre Aristóteles, que contribuíram para desfazer quase totalmente o estereótipo consagrado pela tradição escolástica (e moderna), redescobrindo nele um pensador essencialmente problemático, dedicado ao emprego de instrumentos de investigação considerados descobertas recentes, como a análise da linguagem ou a dialética entendida no antigo sentido do termo, e por isso sem dúvida mais atual – exatamente pelos métodos por ele praticados – do que nunca.

Na obra Aristotélica, Analítica, Tópica, Retórica e Poética constituem formas de racionalidade diretamente associadas a modelos de pensamento e de ação discursiva afeitos, por outro lado, a peculiares maneiras de se conceber, julgar e raciocinar, o que leva o estudioso a identificar diversas espécies de categorias, de juízos e proposições e de raciocínios e argumentos valorizados nos textos aristotélicos, a permitir que se conclua, conforme os seguintes diagramas – e inspirado por Avicena, em vista do que sustenta na obra Mantiq Al-Mashriqiyin – a unidade destas quatro ciências, reunidas, para além da Analítica, no conceito geral de ‘Lógica’. [4]

O que aqui designo por “Lógica Plural” parte do reconhecimento de que a concepção de razão que podemos vislumbrar na filosofia aristotélica é fruto da intersecção destas várias formas de racionalidade, sem que aqui se assuma a perspectiva tomista, encontrada nos Comentários aos Segundos Analíticos (I, 1.I, nº 1-6) de que os quatro graus de lógica seguiriam uma hierarquia descendente que vai do mais certo - ou preciso - analiticamente (Analítica) ao mais incerto (Poética) e dando a entender que, a partir da Tópica, e de maneira descendente, estaríamos lidando apenas com progressivas formas do erro ou pelo menos do conhecimento deficiente. Contemporaneamente, face, por exemplo, as contribuições das lógicas rivais à Lógica Clássica (tais como a Intuicionista, a Paraconsistente, a Fuzzy) ou mesmo diante dos fundamentos racionais da Psicanálise Lacaniana, parece-me que resta superada esta forma de hierarquização (o ser humano é racionalmente complexo pois plurais são as racionalidades destacadas por Aristóteles). Neste sentido:[5]

(...) Tantas serão as lógicas quantos forem os modos essenciais e efetivos de pensar. (...). Quando reflito sobre meus atos e ideias, não estou deduzindo nada a partir de premissas. O mesmo acontece quando discuto com alguém: do que já disse e me foi dito, nada deduzo, mas levo em conta, para poder emitir um novo argumento. Igualmente quando sonho: sempre uma história cheia de significações obscuras, quase sempre uma trama complexa que deve ter sido urdida a partir da memória de imagens e fragmentos verbais, porém, de modo algum, uma monótona sequência de inferências válidas. Em todos estes casos certamente se está pensando, mas não segundo as normas da lógica clássica ou formal. Pela definição adotada, em todos eles estarei pensando, só que segundo diferentes lógicas.

Embora a palavra ‘lógica’ seja plurívoca, o sentido da lógica enquanto ciência que investiga a razão[6] e suas faculdades de conceber, julgar e raciocinar domina nos estudos da Lógica. Outras acepções desta ciência são bastante usuais, tais como “estudo das inferências válidas”, “disciplina que privilegia o estudo de conjuntos coerentes de enunciados” [7], “estudo dos métodos e princípios usados para distinguir o raciocínio correto do incorreto” [8], entre outras. No entanto, tais definições se tornam insuficientes e parciais ao privilegiarem, à luz da tradição, processos identitários formais e dedutivistas de raciocínio, descartando, como regra, a implicação possível entre os domínios da Lógica Formal, Informal e Material (ou Metodologia, em certa acepção), em vista da articulação entre os âmbitos sintáticos, semânticos e pragmáticos da linguagem e dos signos. O exame das formas aristotélicas de racionalidade permite, assim creio, uma salutar dilatação dos campos de estudos da Lógica, ao nela inserir os muitos modos racionais de ser, ou de produzir discursos racionais: [9]

(...) Nem todos redutíveis ao ‘cálculo lógico’ ou aos métodos das ciências, extas, naturais ou ‘humanas’, nem todos dotados do mesmo grau de rigor, isto é, de concisão, de conclusividade. Não obstante, eles são todos igualmente válidos, isto é, universalizáveis, comunicáveis, controláveis: modos que se aproximam, em diversas medidas, do âmbito do não-racionalizável, seja para ‘cima’ (para o âmbito da arte, da religião, da mística), seja para ‘baixo’ (isto é, para o campo do instinto, da paixão, da animalidade), ainda que permanecendo na esfera da racionalidade; modos que atingem até mesmo o nível de uma racionalidade intuitiva, ou, de qualquer modo, não mais discursiva (como a intuição intelectual, ou a intuição prática, ou a criativa), ou que se elevam um pouco sobre o nível da conversação cotidiana, ou até da tagarelice.

Diferentemente do que se possa precipitadamente inferir, Aristóteles fundou não apenas a lógica formal, mas também a informal. A teoria dos sofismas, estruturada por ele no tratado integrante do Órganon denominado Refutações sofísticas, é prova disto. Neste tocante: [10]

(...) Aristóteles não opõe às demonstrações da lógica formal à argumentação informal, nomeadamente à argumentação sobre matérias morais, estéticas, jurídicas ou filosóficas. Muitas vezes, esse tipo de argumentação é demonstrável com os recursos da lógica formal. P.ex., o seguinte argumento moral é demonstrável, dado que é um modus ponens: ‘Se os animais não-humanos não têm direitos porque não têm deveres, também os bebês não têm direitos porque não têm deveres; mas não é verdade que os bebês não têm direitos porque não tem deveres; logo, não é verdade que os animais não-humanos não têm direitos porque não têm deveres.’ Mas esse argumento é dialético, no sentido de Aristóteles, porque as suas premissas não são verdades estabelecidas, mas apenas ‘opiniões respeitáveis’. Assim, os argumentos dialéticos são quaisquer argumentos dedutivos válidos, demonstráveis ou não pela lógica formal, cujas premissas, apesar de plausíveis, estão abertas à discussão.”

Por mais que identidade[11], não-contradição e terceiro excluído sejam princípios vetores de sua lógica – assim como a causalidade[12] - não desconhecia Aristóteles, para além da bivalência verdadeiro ou falso, a possibilidade de um terceiro valor lógico. No capítulo IX do tratado Da interpretação, Aristóteles considerou, um contexto lógico-modal, as proposições contingentes futuras, como, p.ex., “Amanhã haverá uma batalha naval”, “as quais não pode ser atribuído, no momento presente, um valor lógico determinado, o que sugere a existência de um terceiro valor lógico”. [13] O que quero deixar claro nesta breve exposição é que as formas de racionalidades tratadas por Aristóteles vão além da apodíctica[14] – da ciência (epistéme) da demonstração enquanto “hábito demonstrativo” (hexis apodeiktiké) - a qual o filósofo é tradicionalmente apontado como o primeiro teorizador. Porém, ele próprio indica, em Segundos analíticos, a existência de uma ciência “não apodíctica” (espistéme anapódeiktos).[15] É neste tratado que Aristóteles oferece esta célebre definição de ciência: “Pensamos ter ciência de qualquer coisa em sentido próprio – vale dizer, não de modo sofístico, isto é, por acidente – no caso de pensarmos conhecer a causa pela qual a coisa é aquilo que é, que ela é causa daquela coisa e que não é possível que esta seja diversamente.”[16] [17]

Na ciência apodíctica, o conhecimento da causa e a necessidade, são asseguradas pela demonstração (apódeixis) ou silogismo científico (em Primeiros analíticos Aristóteles cuida do silogismo em geral. Para Aristóteles, um silogismo envolve uma dada relação entre proposições que conduz a uma conclusão necessária (Primeiros analíticos, I, 1, 24 b 19). De outro modo, acentuando a diferença entre silogismo demonstrativo e dialético (próprio à dialética aristotélica do provável, ínsito à sua Tópica):

A premissa demonstrativa difere da premissa dialética, por ser a primeira a suposição de um membro de um par de orações contraditórias (porquanto o demonstrador não faz a pergunta, faz uma suposição), ao passo que a segunda é uma resposta à pergunta que, de duas orações contraditórias, deverá ser aceita. Essa diferença, contudo, não afetará o fato de, num caso ou noutro, o resultado ser um silogismo, pois tanto o demonstrador quanto o interrogador extraem uma conclusão silogística por suporem, em primeiro lugar, que algum predicado se aplica ou não se aplica a algum sujeito. Consequentemente, a premissa silogística será simplesmente a afirmação ou negação de algum predicado de algum sujeito de maneira já descrita. A premissa será demonstrativa se for verdadeira e baseada em postulados fundamentais, enquanto a premissa dialética será, para o interrogador, uma resposta à pergunta que, de duas orações contraditórias, deverá ser aceita e, para o raciocinador lógico, uma suposição do que é aparentemente verdadeiro e geralmente aceito, como afirmamos nos Tópicos.” (grifos nossos).

Resta patente que, para Aristóteles, o silogismo pode transita entre campos distintos de racionalidade - da Analítica à Dialética, da Dialética à Retórica (no caso o silogismo recebe o nome de ‘entimema’), da Retórica à Poética), o mesmo acontecendo com a indução, raciocínio igualmente valioso para a compreensão das racionalidades analítica, dialética, retórica e poética aristotélica (para os lógicos puristas que se recusam a reconhecer a indução como fundamento de uma lógica indutiva, ressalto que na obra aristotélica a indução é tão racional quanto a dedução, fundamento inferencial do noûs aristotélico, que não se confundindo com a intuição, posto ser um conhecimento fruto de uma epagogé, isto é, de um processo que além de indutivo, “guia para alguma coisa” (de ago, conduzir, guiar, e epí, para, ou na direção), ou seja, “introdução”.[18]

Embora também tenha por intenção tomar os referenciais aristotélicos como ponto de partida para que eu possa – quem sabe em outra exposição - implicar as quatro racionalidades citadas à luz de problemáticas contemporâneas (tendo em vista, por exemplo, o advento e a sistematização no século XX de lógicas complementares ou rivais da Lógica Aristotélica), friso que, em vista da diversos significados que a expressão ‘dialética’ possui, em Aristóteles ela é a lógica do provável. Procedimento racional não demonstrativo, dialético, conforme notamos acima, é o silogismo que, em vez de partir de premissas verdadeiras, parte de premissas prováveis, geralmente admitidas. "Provável", para Aristóteles, "é o que parece aceitável a todos, à maioria ou aos sábios, e, entre estes, a todos, à maioria ou aos mais notáveis e ilustres" (Tópicos, 1,1,100 b 23 ss.).

Apenas para apontarmos o quanto a palavra dialética se presta a empregos diversos, o mesmo Aristóteles designa por dialético o silogismo polêmico ou erístico (adjetivo derivado do substantivo eris: luta, querela, discórdia, rivalidade) que parte de premissas que parecem prováveis, mas não são (obra citada, 100 b 23 ss.):

O silogismo é polêmico, se fundado em opiniões que, embora pareçam receber aceitação geral, de fato não recebem, ou se meramente parece se fundar em opiniões que são, ou parecem ser geralmente aceitas, pois nem toda opinião que parece receber aceitação geral realmente a recebe. Em nenhuma das chamadas opiniões de aceitação geral é a aparência falaciosa totalmente manifesta como acontece com os princípios dos argumentos polêmicos, pois usualmente a natureza da falsidade nestes é imediatamente visível, mesmo para aqueles que possuem modesta capacidade de entendimento. [19]

Cumpre distinguir o que segue: por mais que tenhamos adentrado, a partir destas referências, o terreno da Retórica (ou seja, da ‘arte de persuadir, de produzir crença) é pertinente destacar que nem toda Retórica apresenta caráter erístico, embora, por outro lado, frequentemente dialética e retórica aristotélicas se confundam. Aristóteles considerava a Retórica não-erística verdadeira arte, digna de ser ensinada, recusando a praticada por sofistas como Górgias, Isócrates ou Protágoras. De fato, opta por uma Retórica do tipo desejado por Platão no Fedro, baseada na dialética e articulada com a política. A ‘boa retórica’ produziria uma autêntica persuasão enquanto a ‘má retórica’, confundindo-se com a erística estaria respaldada em argumentos e persuasões aparentes. Esta distinção entre o persuasivo autêntico e o persuasivo aparente é paralela à distinção entre silogismo e silogismo aparente (silogismo que parece concluir mas não conclui). Neste caso, um silogismo incorreto.

Ganha contornos mais densos o que afirmei acima em face da analogia estrutural explicitamente elaborada por Aristóteles, por julgar a Retórica especular, convertível, semelhante ou verdadeira imagem da dialética.

É, pois, evidente que a retórica não pertence a nenhum gênero particular e definido, antes se assemelha à dialética. É também evidente que ele é útil e que a sua função não é persuadir, mas discernir os meios de persuasão mais pertinentes a cada caso, tal como acontece em todas outras artes; de facto, não é da medicina dar saúde ao doente, mas avançar o mais possível na direção da cura, pois também se pode cuidar bem dos que já não estão em condições de recuperar a saúde. (Retórica, I, 1355b, 41)

De certo modo, a dialética constitui uma das partes argumentativas da Retórica, identificada com a argumentação da ordem do logos (outros argumentos retóricos são o pathos e o ethos):[20]

Cabe esclarecer, porém, que a argumentação não tem a mesma função, portanto o mesmo sentido, em ambos os casos. A dialética é um jogo especulativo. A retórica, por sua vez, não é um jogo. È um instrumento de ação social, e o seu domínio é o da deliberação (buleusis); ora, esse domínio é precisamente o do verossímil (...). Retórica e dialética são, pois, duas disciplinas diferentes, mas que se cruzam como dois círculos em intersecção. A dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. Pois bem, se os dois círculos podem cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano e – indo mais longe – porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo.

Importa, por outro lado, adaptando o ensinamento de Luigi Pareyson à esta concepção lógico-pluralista esboçada, indicar, no seguinte diagrama, alguns distintos significados de ‘verossímil’, para que possamos entendê-lo como um signo versátil que se estende desde a Analítica até à Poética: [21]

Por mais que em Aristóteles o vocábulo ‘poíesis’ esteja inscrito nas denominadas ‘artes’ ou ‘ciências poéticas’ (medicina e ginástica entre elas), Retórica e Poética, que não investigam as causas primeiras - como as demais artes - têm em comum uma característica que as distingue de todas as outras: elas têm por objeto as palavras, apresentando a Poética – bem como as demais formas de racionalidade – uma racionalidade própria, considerando-a mais filosófica e científica do que a história, pelo fato de que muito dela tem por objeto o universa, enquanto a história tem por objeto apenas casos particulares:[22] [23]

Contudo, o universal que é objeto da poesia é somente o possível, não o real, por isso ela não deve procurar o verdadeiro, mas somente o verossímil (9, 1451 a 36-b 11). Também nisso, por outro lado, ela pode servir-se de argumentações: uma verdadeira forma de argumentação é, com efeito, a analogia, pressuposta por uma das mas importantes formas de expressão poética, a ‘metáfora’.

Sem ter a pretensão de esgotar todos os desdobramentos das proposições que realizamos ao início desta exposição, quero aqui finalizar com a convicção de que as implicações entre as formas aristotélicas de racionalidade permitem, contemporaneamente, cogitar que Aristóteles criou as bases para que seja possível afirmar que a racionalidade humana é uma única potência que se manifesta ao menos de quatro maneiras diversas, inclusive dialeticamente (ou seja, também visando a dialética em acepção heraclitiana). Hodiernamente, é possível sustentar a existência de muitas lógicas, estruturadas tantos nos princípios fundamentais da Lógica Aristotélica, quanto em princípios rivais à identidade, não-contradição e terceiro excluído, por meio da sistematização de lógicas da diferença, da contradição (dialéticas em outras acepções) e do terceiro incluído que, assim penso, são também em grande parte tributárias das dialéticas platônica e aristotélica (vide a Lógica Dialógica de Paul Lorenzen ou mesmo a Polivalente de Lukasiewicz).

Aristóteles também proporcionou o surgimento da Lógica Modal, ao destacar em seu Órganon os modos aléticos do possível, do impossível, do contingente e do necessário. Autoriza Aristóteles, inclusive, que a Lógica Jurídica contemporânea - além de estar dominantemente alicerçada na lógica identitária - esteja fundamentada nos conhecimentos oriundos da Tópica e da Retórica, como bem demonstraram Theodor Viehweg em Tópica e jurisprudência e Chaïm Perelman em seu Tratado de argumentação – A nova retórica. Por fim, ainda à guisa de exemplificação, não nos esqueçamos da Psicanálise lacaniana, cujo estatuto lógico não seria possível sem que as racionalidades aristotélicas tivessem se projetado e interferido de tal maneira no pensamento de Jacques Lacan a tal ponto deste afirmar em seus Escritos:[24]

Sabemos da lista de disciplinas que Freud apontava como devendo constituir as ciências anexas de uma Faculdade ideal de psicanálise. Nela encontramos, ao lado da psiquiatria e da sexologia, " a história da civilização, a mitologia, a psicologia das religiões, a história e a crítica literárias". O conjunto dessas matérias, que determina o cursus de um ensino técnico, inscreve-se normalmente no triângulo epistemológico que já descrevemos, e que forneceria seu método a um ensino superior de sua teoria e sua técnica. A ele acrescentaríamos de bom grado, por nosso turno: a retórica, a dialética, no sentido técnico que esse termo assume nos Tópicos de Aristóteles, a gramática e, auge supremo da estética da linguagem, a poética, que incluiria a técnica, deixada na obscuridade, do chiste. E se essas rubricas para alguns evocassem ressonâncias meio obsoletas, não nos repugnaria endossá-las como um retomo a nossas origens. Pois a psicanálise, em seu desenvolvimento inicial, ligado à descoberta e ao estudo dos símbolos, iria participar da estrutura do que se chamava, na Idade Média, " artes liberais". Privada como estas de uma verdadeira formalização, ela se organizaria, à semelhança delas, num corpo de problemas privilegiados, cada qual promovido por uma relação fortuita do homem com sua própria medida, e extraindo dessa particularidade um encanto e uma humanidade que podem compensar, a nosso ver, o aspecto um tanto recreativo da apresentação deles. Não desdenhemos desse aspecto nas primeiras elaborações da psicanálise; ele não exprime nada menos, com efeito, do que a recriação do sentido humano nos áridos tempos do cientificismo. Desdenhemo-los ainda menos na medida em que a psicanálise não elevou o nível, ao enveredar pelos falsos caminhos de uma teorização contrária à sua estrutura dialética. Ela só dará fundamentos científicos à sua teoria e à sua técnica ao formalizar adequadamente as dimensões essenciais de sua experiência, que são, juntamente com a teoria histórica do símbolo, a lógica intersubjetiva e a temporalidade do sujeito. (grifos nossos)


MUITO OBRIGADO!


[1] “Quod argumenti satis est nullam dissimilitudinem esse in genere. Quae si esset, non una omnis definitio contineret. Etenim ratio, qua una praestamus belvis, per quam coniectura valemus, argumentamur, refellimus, disserimus, conficimus aliquid, concludimus, certe est communis, doctrina differens, discendi quidem facultate par. Nam et sensibus eadem omnium conprehenduntur, et ea quae movent sensus, itidem movent omnium, quaeque in animis inprimuntur, de quibus ante dixi, inchoatae intellegentiae, similiter in omnibus inprimuntur, interpresque mentis oratio verbis discrepat, sententiis congruens. Nec est quisquam gentis ullius, qui ducem nactus naturam ad virtutem pervenire non possit.”

[2] P. XIII.

[3] O autor faz referência neste contexto ao que se debateu no segundo encontro dos Symposia Aristotelica organizado por Ingmar Düring em 1960 em Louvain, quando foi enfrentado o tema “Aristóteles e os problemas do método”. Ali praticamente reabilitou-se a tese de Jean Marie Le Blond, sustentada por este em 1939, também em Louvain, mas à época intensamente rechaçada, de que haveria uma profunda diferença em Aristóteles entre lógica e método, descobrindo-se neste segundo encontro a quantidade expressiva de outros métodos (para além do estritamente lógico-dedutivo) teorizados e praticados pelo preceptor de Alexandre Magno em suas diversas incursões especulativas (op. cit, pp. XII e XIII).

[4] Na obra “Avicenna”, Olga Lizzini, ensina que o filósofo árabe incorpora em sua lógica a tese da "Isagoge" ("al-Madhal") de Porfírio, a abrir a sua "Lógica" ("al-Mantiq") conferindo aspecto científico e, por isso, inovador, aos livros que a seguem, quais sejam, os seis correspondentes do "Órganon" de Aristóteles, mais dois, a "Retórica" ("al-Hitâba") e a "Poética" ("al-Shi'r"), de acordo com o currículo alexandrino (pp. 30-32). Segundo o Barão Carra de Vaux, isto “mostra quanto era vasta a idéia que ele fazia desta arte”, em cujo objeto fizera ingressar “o estudo de todos os diversos graus de persuasão, deste a demonstração rigorosa até à sugestão poética” (in Avicenne, paris, Alcan, 1900, pp. 160-161).

[5] BARBOSA, Marcelo Celani. As lógicas. As lógicas ressuscitadas segundo Luiz Sérgio Coelho de Sampaio. São Paulo: Makron Books, pp. 2-3.

[6] “A palavra ‘razão’ possui diversos significados. Entre outros, os seguintes: 1) faculdade do pensamento discursivo, por contraposição ao intuitivo; 2) faculdade de bem julgar, isto é, de distinguir o verdadeiro do falso e o bem do mal; 3) faculdade do conhecimento natural, por oposição à fé e à revelação; 4) conjunto dos princípios gerais, reguladores do pensamento discursivo (...) A razão é a faculdade por intermédio da qual concebemos, julgamos e raciocinamos, isto é, refletimos, pensamos. Ela se caracteriza por duas funções: em primeiro lugar, é a faculdade que forma conceitos e, em particular, constitui as categorias, ou seja, os conceitos-chave, do pensamento cognitivo em geral; desse ponto de vista, suas função é a de coordenar os dados da experiência e fornecer os moldes subjacentes a todo pensamento objetivo. Em segundo, ela é a faculdade de combinar conceitos, julgando e inferindo, sob este aspecto, sua função é tipicamente ativa.” (Costa, Newton da. Ensaio sobre os fundamentos da Lógica. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 2008.

[7] ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 722.

[8] Copi, Irving. Introdução à Lógica. 2. Ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 19.

[9] BERTI, op. cit, p. XVI.

[10] BRANQUINHO, João e outros. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 477.

[11] A identidade tem sua gênese histórica – caso a tomemos enquanto conquista cultural e artifício de organização do pensamento e do mundo – no Tratado da Natureza de Parmênides, que permitiu, por meio de sua concepção filosófico-ontológica, a a firmação de que ‘o que é, é’, ou seja, A = A.

[12] Tudo tem uma razão – suficiente - de ser. Tudo tem, nesta perspectiva, uma causa, submetendo-se também ao princípio da substância e das leis.

[13] Branquinho, João e outros. Op. cit., p. 495.

[14]Latim, APODICTICUS, Grego APODIKTIKÓS, “claramente, totalmente provado”, de APO-, “para fora”, mais DEIKNYNAI, “mostrar, demonstrar”. Não se confunde com APOPHANTIKÓS, “aquele que determina, que declara”, de APOPHAINEIN, “mostrar, tornar conhecido”, de APO-, mais PHAINEIN, “exibir, mostrar”, de PHOS, “luz”.

[15] Segundos Analíticos, I3, 72 b 18-20.

[16] I 2, 71 b 9-12

[17] “O caráter de necessidade, exatamente da ciência entendida em sentido aristotélico, é frequentemente indicado por Aristóteles mediante a afirmação de que a ciência é conhecimento das coisas que existem ‘sempre’: isso não significa que todos os objetos da ciência sejam substâncias eternas, como eram para Platão os objetos da matemática e para Aristóteles os astros e seus motores, mas que são eternos os nexos entre certos objetos e certas propriedades suas, das quais se tem ciência. Por exemplo, o nexo entre o triângulo e a propriedade de ter a soma dos ângulos internos igual a dois ângulos retos é eterno, enquanto o triângulo tem ‘sempre’ esta propriedade, isto é, qualquer triângulo em qualquer condição a tem.” (Berti, op. cit. p. 5)

[18] “Trata-se do processo pelo qual o docente guia, ou conduz, os discípulos à apreensão dos princípios. Ele se move, como se sabe, da sensação, por exemplo da visão de uma figura desenha, passa pela recordação, isto é, por sua fixação na mente, pela experiência, isto é, pela repetição deste último ato, e chega ao universal, ou seja, à definição da figura em geral, da qual a figura desenhada é somente uma caso particular (...).” (BERTI, op. cit, p. 15)

[19] Tópicos, 1,1,100 b 23 ss.

[20] REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 37-40.

[21] PAREYSON, Luigui. IL Verisimile Nella Poetica di Aristotele ([1950] 2000) In Problemi dell’estética II. Storia. a cura de Marco Ravera. Milano: Mursia Editore, 2000. (Centro Studi Filosofico – Religiosi Luigi Pareyson, Opere Complete - Vol. 11.) (p.95 – 117)

[22] BERTI, op. cit., p. 165.

[23] “A metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do género para a espécie, ou da espécie para o género, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia. 9 129. Transporte do género para a espécie é o que se dá, por exemplo, na proposição "aqui minha nave se deteve", pois o "estar ancorado" é uma parte do género "deter-se". Transporte da espécie para o género, na proposição "Na verdade, milhares e milhares de gloriosos feitos Ulisses levou a cabo", porque "milhares e milhares" está por "muitos", e o poeta se serve destes termos específicos, em lugar do genérico "muitos". "Tendo-lhe esgotado a vida com seu bronze" e "cortando com o duro bronze" são exemplos de transporte de espécie para espécie. No primeiro, o poeta usou, em lugar de "cortar", "esgotar", e no segundo, em lugar de "esgotar", "cortar", mas ambas as palavras especificam o "tirar a vida". 16 130. Digo que há analogia, quando o segundo termo está para o primeiro, na igual relação em que está o quarto para o terceiro, porque, neste caso, o quarto termo poderá substituir o segundo, e o segundo, o quarto. E algumas vezes os poetas ajuntam o termo ao qual se refere a palavra substituída pela metáfora. Por exemplo, a "urna" está para "Dioniso", como o "escudo" para "Ares", e assim se dirá a urna "escudo de Dioniso", e o escudo, "urna de Ares". Também se dá a mesma relação, por um lado, entre a velhice e a vida, e por outro lado, entre a tarde e o dia; por isso a tarde será denominada "velhice do dia", ou, como Empédocles, dir-se-á a velhice "tarde da vida" ou "ocaso da vida". Por vezes falta algum dos quatro nomes na relação análoga, mas ainda assim se fará a metáfora. Por exemplo, "lançar a semente" diz-se "semear"; mas não há palavra que designe "lançar a luz do sol", todavia esta ação tem a mesma relação com o sol, que o semear com a semente; por isso se dirá "semeando uma chama criada pelo deus". Há outro modo de usar esta espécie de metáfora, o qual consiste em empregar o nome metafórico, negando porém alguma das suas qualidades próprias, como acontece se 134 alguém chamar ao escudo, não a "urna de Ares", mas a "urna sem vinho".” (Poética, 21, 1457 b 1)

[24] In: “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 289-290.





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