ALGUMAS PROBLEMÁTICAS HERMENÊUTICAS ACERCA DA LEI MARIA DA PENHA

ALGUMAS PROBLEMÁTICAS HERMENÊUTICAS
ACERCA DA LEI MARIA DA PENHA
Prof. Dr. Luís Rodolfo de Souza Dantas

A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), representa enorme avanço no campo dos direitos fundamentais ao intensificar o combate às violências de caráter físico, moral, psíquico, patrimonial, entre outras, perpetradas contra as mulheres em nosso país, apontadas em rol não taxativo inscrito no caput do art. 5º e detalhado pelo art. 7º, incisos I a V, da citada lei, violências que representam manifestações odientas direcionadas à supressão ou negação da dignidade das vítimas da violência doméstica e familiar. 
Visa a Lei Maria da Penha proteger, diretamente,  a mulher vulnerável, vítima do preconceito e da discriminação em razão do condicionamento cultural a que estamos submetidos, associados há séculos à submissão pelas mulheres ao cumprimento de certos papéis sociais desumanamente impingidos. 
Inestimável estatuto de caráter repressivo reveste-se de natureza preventiva e assistencial, ao criar mecanismos potencialmente aptos a coibir estas formas de agressão, assegurando às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, de acordo com a letra de seu artigo 3º.

Por outro lado,  além de sua profunda relevância no campo da teoria e realização dos direitos fundamentais, a Lei Maria da Penha é texto fértil para ricas incursões nos modos como o direito pode ou deve ser interpretado e aplicado ao visar garantir os direitos máximos do ser humano, destacadamente em face de uma realidade que aponta a violência contra a mulher algo a ser combatido com o instrumental legal e hermenêutico-decisório que torne a norma realidade no plano dos fatos do cotidiano de milhares de brasileiras, e não apenas um mero paliativo na questão da violência de gênero contra a mulher.

Apenas para ficarmos com um primeiro exemplo, há condições de inferir que a lei em comento é referência das mais importantes no âmbito de uma Hermenêutica Jurídica sensível à realidade de problemáticas doutrinárias e jurisprudenciais pátrias, por apresentar-se receptível na contemporaneidade hermenêutico-jurídica às mais diversas abordagens exegéticas e argumentativas, a enriquecer sobremaneira a reflexão acerca do papel da Hermenêutica ou mesmo da Lógica Jurídica para a eficácia dos direitos humanos fundamentais em nosso país.

Deste modo, merece atenção, entre tantas controvérsias hermenêuticas que a lei suscita, a discussão acerca do maior alcance de suas medidas preventivas e repressivas, que apresentaria, segundo os defensores de uma compreensão extensiva, ductibilidade e elasticidade compreensivas suficientes para amparar os interesses de outras minorias ou de indivíduos hipossuficientes, como crianças ou idosos, vítimas diárias no Brasil das piores violações da dignidade e muito frequentemente realizadas por pessoas que deveriam protegê-las, no exercício de formas de violência tão maléficas e perniciosas quanto as praticadas contra as mulheres. 
Destarte, talvez possa vir a se tornar a lei Maria da Penha, cada vez mais, veículo dos mais contundentes para que cesse no Brasil toda e qualquer forma de violência possível de ser definida como doméstica e/ou familiar.
Nesta esteira, registro que a Lei Maria da Penha é texto que, embora localizado fora de nosso código constitucional, inequivocamente consagra disposições principiológicas e normativas de caráter jusfundamental diretamente calcadas no princípio da dignidade da pessoa humana, a conduzir o intérprete e aplicador das obrigações, proibições e permissões dela oriundas pelos meandros de métodos interpretativos próprios à Hermenêutica, à Hermenêutica Jurídica e Constitucional e também relativos aos direitos humanos positivados na Constituição brasileira de 1988 e espraiados em uma séria de leis que, embora não formalmente constitucionais, carregam conteúdo materialmente constitucional.
De fato, a dignidade humana é fundamento axiológico maior dos processos hermenêuticos que visem de início, e tendo em vista a literal compreensão da lei, a proteção de mulheres hipossuficientes diante da força ou coação terríveis de quem pratica a nefasta violência. O ser humano é incomensuravelmente valioso por ser – e disto sabemos todos mesmo que intuitivamente - humano. 
Este humano realiza-se na liberdade e na igualdade valorando a si e ao outro. Sujeito que conhece, é apto a julgar axiologicamente, ao ponto de construir escalonamentos valorativos que norteiam as condutas pessoais  individual, coletiva, difusa, política e juridicamente concebidas. O valor nuclear de todos os valores de fato é a dignidade da pessoa humana ou mesmo o ser humano em sua máxima consideração, realidade que deve ser permanentemente afirmada também no sistema jurídico, mormente mediante positivações normativas que têm ampliado a relação de direitos humanos fundamentais genéricos e específicos.
Este que pratica a violência, por sinal, é o agente da negação da condição do ser humano como valor fonte de todos os valores, na esteira da primorosa lição de Miguel Reale, que permite concluir que a realidade ontológica e fática do ser humano foi objeto de valoração pelo indivíduo racional que na história julga e afirma a si e ao semelhante expressão do que existe de mais valioso. 
A dignidade tem certa natureza difusa e matalinguística: os demais valores e princípios jusfundamentais encontram nela a sua razão suficiente de ser e negar qualquer direito fundamental é infirmar a própria dignidade (neste sentido, a dignidade unifica todos os direitos fundamentais, ao mesmo tempo que projeta sua força hermenêutica, plural e compreensiva em cada espécie de direito fundamental e em cada singularidade do caso concreto a ensejar a solução mais razoável, prudente ou justa).
Realmente, há valores tais como honra, integridade, liberdade, igualdade, alicerçados na dignidade, intrínsecos aos princípios e regras de direitos humanos fundamentais que, ao permearem a Lei Maria da Penha, contribuem para a inteligência de um direito objetivo carregado de autorizações e faculdades jurídico-materiais e processuais  que intentam minar o comportamento marcado pelo exercício da violência covarde e muitas vezes anônima que, ao resguardar-se na intimidade e privacidade doméstica e/ou familiares, impede que a vítima tenha voz, mediante dispositivos físicos e morais (dor corpórea, culpa, remorso, humilhação, entre outros) que deixam cicatrizes terríveis na alma, embora no corpo nem sempre, o que contribui para tornar a violência contra a mulher muitas vezes imperceptível para tantos ou fadada ao oblívio ao nem sempre deixar vestígios físicos aparentes.
Por outro lado e tradicionalmente, ao menos desde a virada hermenêutico-jurídica pós Segunda Guerra Mundial observada no mundo ocidental, há o reconhecimento quase consensual entre os doutrinadores e demais profissionais do Direito de que as espécies de interpretação jurídica são diversas e complementares, sendo classificadas usualmente de acordo com a origem ou fonte da qual emana a atividade hermenêutica (autêntica, doutrinal, judicial, administrativa, entre outras),  de acordo com o método empregado na interpretação (literal, literal-gramatical, gramatical ou filológico; lógico, sistemático, genético,  histórico-evolutivo, teleológico, analógico, sociológico, para indicarmos alguns) e, por uma decorrência lógica, classificadas tendo em vista os efeitos ou resultados advindos da aplicação de uma ou mais técnicas que permitem estabelecer o sentido e o alcance das expressões jurídicas próprias ao texto de complexa natureza normativa, valorativa, histórica, semântica, sociológica... que é a Lei Maria da Penha (neste caso, nesta classificação ou a interpretação é extensiva: compreende-se mais do que a letra expressa; ou restritiva: compreende-se menos do que a letra manifesta ou  então estrita: compreende-se de acordo com o limites de uma letra jurídica que, após ser enfocada por diversos métodos de interpretação, demarca o entendimento por ser teleológica e socialmente benéfica.
 Outrossim, por ser lei (lex; legere) a Lei Maria da Penha é lida  e  interpretada a partir de uma superfície textual construída por palavras e termos centrais ao seu entendimento, a servir de ponto de partida à extração dos elementos normativos, valorativos e fáticos vitais inclusive à subsunção desta lei aos mais diversos casos concretos. Sem ter a pretensão de esgotar a matéria atinente aos limites e possibilidades hermenêuticas e argumentativas da exegese da Lei Maria da Penha, passo a pontuar, de uma maneira mais sistemática, algumas questões merecedoras de atenção e que são inerentes à extração de sentidos de texto ao menos hermeneuticamente tão rico.
Primeiramente, não podemos deixar de destacar que o Supremo Tribunal Federal confirmou por unanimidade a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, com base no voto do relator, ministro Marco Aurélio, para quem ela não ofende o princípio da isonomia ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Os ministros consideraram que todos os artigos da lei estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural. 
Realmente, no tocante à constitucionalidade da lei, há interpretações e argumentos robustos para potencializar o princípio da isonomia em sua versão talvez menos previsível: a de direito fundamental à desigualdade. Embora aberta a outras variáveis interpretativas, há uma série de fundamentos jurídicos internacionais e de direito interno, principalmente nossa Lei Maior, que permitem concluir que o dever de tratamento desigual foi observado pelo legislador. Há razões suficientes na realidade brasileira e no mundo do dever ser para investir esforços no combate à violência contra a mulher, sem que tais esforços possam ser caracterizados como expressões de favorecimento iníquo a determinada categoria de pessoa em detrimento de outros indivíduos e grupos minoritários merecedores de proteção.
Destarte, a decisão do STF reforça a noção de base aristotélica de que o justo e equitativo implica o tratamento igual dos iguais, e desigual dos desiguais, a permitir trazer à baila outra questão hermenêutica significativa: o princípio da máxima efetividade dos direitos humanos e/ou fundamentais deve servir de esteio a decisões judiciais que ampliam o manto protetivo da lei a outros indivíduos vítimas de violência doméstica e familiar que não sejam mulheres em certa acepção ou sejam, mesmo que indivíduos do sexo masculino, submetidos a situações de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão em ambiente doméstico e/ou familiar? Há sólidos argumentos e sensatas abordagens hermenêuticas sobre o assunto para se garantir o tratamento igual aos iguais em relação a homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos, pessoas de todas as diversidades sexuais amparadas constitucionalmente, vítimas do tipo de violência aqui abordado. 
Na realidade, devemos ampliar um pouco mais a problemática: pelo emprego dos mais diversos métodos de interpretação, a Lei Maria da Penha pode ser compreendida de acordo com referenciais de caráter gramatical, lógico-conceitual, histórico, valorativo e teleológico, sociológico, sistêmico, analógico-comparativo, entre outros, que não devem permitir esquecer, no entanto, a Lei Maria da Penha foi originalmente direcionada ao amparo de mulheres por razões que a sombria realidade brasileira revela nas estatísticas oficiais e não oficiais. Portanto, há que se ter o cuidado em não se banalizar o uso da Lei Maria da Penha a tal ponto de impedir que ela continue a servir de suporte à sua principal bandeira: a luta contra a violência praticada contra a mulher nas hipóteses que exemplifica.
Em outro sentido, o artigo 4o  da lei traz disposição que realça a importância da interpretação teleológica ao enunciar que na aplicação da Lei Maria da Penha serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Em realidade, esta disposição está parcialmente em consonância com o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que determina que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins  sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. 
Por causa de sua intensa voltagem jusfundamental é quase inevitável que a Lei Maria da Penha se torne a via pela qual os fins axiológicos da lei (bem comum, honra, paz, dignidade, entre tantos outros) se dirijam para contribuir para o fim da violência doméstica e/ou familiar contra a mulher, na lei reconhecida na menção à singularidade das condições peculiares das mulheres sujeitas à violência em tela. Sem dúvida, a interpretação teleológica é indispensável ao intérprete que necessita determinar o fim ou fins que a lei tutela ou tenciona servir ou tutelar, fins de caráter axiológico que nem sempre podem ser identificados por meio da letra fria da lei.
Creio ser relevante também apontar que a Lei Maria da Penha é iniciada por preâmbulo e artigo 1º que evidenciam e prestigiam o método sistemático de interpretação. Tais disposições exigem um intérprete apto a compreender a lei não como um todo isolado em si mesmo, mas como parte integrante de um todo e um todo integrante de partes que estão em interação hermenêutica, repelindo a nociva interpretação isolada ao voltar o exegeta e/ou aplicador do direito a um entendimento de uma lei que tão melhor se compreende quão melhor for a capacidade do hermeneuta de articular suas disposições, por exemplo, ao § 8o do art. 226 da Constituição Federal, à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e a outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. De outro modo, subsiste questão hermenêutica associada à compreensão sistemática e lógico-normativa da lei por causa de sua propriedades penais.
A Lei Maria da Penha não cria propriamente novos tipos penais. No entanto, complementa dispositivos previamente existentes à lei, com função especializante (por exemplo, ao excluir benefícios despenalizadores (art. 41), alterar penas (art. 44), estabelecer nova majorante (art. 44) e agravante (art. 43), engendrar novas possibilidades de prisão preventiva (arts. 20 e 42). Com a vigência da Lei Maria da Penha variantes hermenêuticas das lesões corporais leves praticadas em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher, do mesmo modo, ameaças, constrangimento ilegal, crime de periclitação da vida e da saúde, exercício arbitrário das próprias razões, dano, crimes contra a honra, situações específicas que prevalecem sobre as disposições gerais, tornaram-se uma realidade no universo jurídico-penal em franca interação sistemática com os direitos fundamentais.
Registro, ainda com relação a tal interação hermenêutico-sistêmica em que ramos distintos do Direito se encontram e se confundem, que a máxima de que varia a interpretação conforme o ramo do Direito é exigida à luz da constatação de uma realidade textual e hermenêutica de aspecto intensamente interdisciplinar (neste tocante, chamo a atenção para o conteúdo do art. 29 da Lei Maria da Penha, que fortalece os vínculos entre conhecimentos de áreas diversas, na intenção de se enriquecer ou aprimorar os conhecimentos específicos de determinadas searas científicas e profissionais: “Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde”). Esta interdisciplinaridade mostra-se metodologicamente fundamental para uma adequada compreensão da lei, tanto para interpretações pautadas em fundamentos interdisciplinares internos quanto externos ao Direito.
 Também parece oportuno ponderar que, se varia a interpretação jurídica conforme o ramo do Direito, uma lei que sintetiza funções jurídico-normativas ínsitas a vários segmentos científico-jurídicos com peculiaridades exegéticas tão marcantes está vocacionada a tornar-se exemplo do que anteriormente sugerimos: todos os métodos de interpretação são válidos na busca de se obter, ao menos diante do caso concreto, a solução que seja capaz de focar e defender a dignidade humana, a paz, a verdade e a justiça. 
Eles não se excluem com base em uma racionalidade jurídica afeita aos reducionismos metodológicos de praxe, mas com respaldo em uma racionalidade sensível à realidade fático-social da mulher brasileira em situação de violência doméstica e/ou familiar, prima facie,  comparecendo a analogia como espécie de raciocínio indutivo que permite contornar eventuais anomias detectadas na lei, com efeito extensivo também por seu uso nas hipótese de se entender que sua ratio legis, sua razão ontológica de ser, reside mais em seu espírito do que em sua letra.
Ademais, este pluralismo hermenêutico necessário ao entendimento da Lei Maria da Penha não afasta, naturalmente, o alto valor das tradicionais interpretações gramatical e lógica. Realmente, nossa lei reúne palavras, termos, conceitos que são de fundamental relevância à sua compreensão. A palavra “mulher”, por exemplo, torna-se imprescindível referência não apenas no que tange à apreensão do sentido tradicional, mas de outros sentidos relativos ao fato de não estarmos diante da mulher em qualquer condição, mas da mulher associada a violência contra o gênero.
Sem dúvida, é indagação de destacada relevância hermenêutica, de aspecto também gramatical e lógico-conceitual, se toda violência doméstica e familiar contra mulher no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação de afeto está abrangida pela Lei Maria da Penha. A letra do artigo 5º da lei é aparentemente de clara compreensão: para os efeitos da lei, configura violência doméstica e familiar contra mulher exclusivamente a conduta baseada no gênero. Portanto, a Lei Maria da Penha não albergaria, por esta leitura, toda e qualquer violência doméstica contra mulher, por exigir conduta baseada no gênero.
Assim, o simples fato de a pessoa ser mulher não a torna necessariamente passível de proteção penal especial o que indicaria, ao menos nesta vertente hermenêutica e argumentativa, que a violência doméstica não se confunde com violência de gênero, assim como nem toda violência doméstica é necessariamente familiar. É necessário, portanto, ao menos dar relevo às nuances semânticas e conceituais afeitas à diferença existente entre violência doméstica e a violência de gênero - por essência discriminatória - da qual a mulher é a principal vítima. 
A palavra e o conceito de “gênero” não são definidos simplesmente por critérios biológicos e sexuais. As diferenças sexuais biológicas são dadas pela natureza e no contexto da Lei Maria da Penha há a inequívoca recepção das construções social e cultural do masculino e do feminino a exigirem um intérprete capaz de atentar para as desigualdades socioculturais existentes entre mulheres e homens, a repercutir na esfera privada e pública de ambos os sexos por meio de mecanismos de opressão e submissão.  Na violência de gênero, o homem se comporta como se estivesse no seu direito e a mulher  geralmente acaba por se sentir culpada pela violência sofrida.
Considero novamente a interpretação sistemática para frisar que a Lei Maria da Penha não deveria ser compreendida de acordo com um lógica servil ao princípio do terceiro excluído (isto ou aquilo), mas fundamentada naquilo que em outro trabalho designamos  por “princípio do terceiro incluído” (isto e aquilo), a guiar os processos hermenêuticos que não são hierarquizados entre si mas se interpenetram e se reforçam, como na hipótese de tornar mais requintado o entendimento conceitual sobre a violência em objeto diante, por exemplo, de uma exegese de natureza comparativa, analógica e sistemática exigida durante a extração dos significados pertinentes ao que o  Conselho da Europa expressa sobre tal forma de violência (gênero). 
Para ele, esta violência é  “qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais”.
Sem ter a intenção de neste espaço destrinchar todas as questões hermenêuticas de grande importância atreladas ao entendimento e concretização da Lei Maria de Penha, nos dirigimos para a conclusão destas breves observações reconhecendo que aquilo que for benéfico pode e deve ser interpretado extensivamente, como na hipótese de sua aplicação em face de violência doméstica e/ou familiar exercida, por exemplo, contra indivíduos do sexo masculino hetero e homossexuais, contra idosos ou crianças. De outro moído, há que se tomar muito cuidado com as definições e classificações que derivam da interpretação da lei, o que se constata, em outra exemplo, com a expressão “violência doméstica e familiar”. 
Embora ao longo do texto legal, o legislador use sempre esta expressão parece-nos mais acertado inferir que a vontade da lei visa diferenciar a hipótese de violência doméstica da de violência familiar, ao reservar à primeira a situação em que as diversas formas de violência ocorrem na unidade doméstica, sem necessidade de vínculos parentais, conforme previsão do art. 5º, I, da Lei Maria da Penha, enquanto as situações de violência familiar estariam notadamente relacionadas às formas de violência praticadas entre parentes ou pessoas com vínculo afetivo (art. 5º, II e III). Partindo-se desta distinção, parece mais razoável registrar e entender a violência como passível de ser doméstica e/ou  familiar  contra a mulher, em primeiro momento.
Há disposições da Lei Maria da Penha que exigem, em face de sua substância textual juridicamente diversificada, ora interpretações mais cautelosas e estritas (disposições material e processualmente penais, por exemplo) ora compreensões mais elásticas, em face da carga axiológica diretamente implicada no princípio na dignidade humana.  
A interpretação estrita há de ser aplicada, por exemplo, quando se trata de leis que impõem penalidades ou que cominam multas. 0 Código de Direito Canônico, exempli gratia, estabelece no seu cânone 18: "As leis que estabelecem pena ou limitam o livre exercício dos direitos ou contêm exceção à lei, devem ser interpretadas estritamente". O mesmo vale para a Lei Maria da Penha. Talvez o melhor intérprete desta lei seja aquele que demonstre a salutar faculdade de bem e prudentemente explorar sua face verbal e gramatical atento às nuances de sentidos implícitos obtidos por meio de abordagens sistemáticas, lógicas (principalmente conceituais), históricas, sociológicas, teleológicas, analógicas e comparativas que este texto de tanta relevância para a atual fase de instrumentalização dos direitos humanos no Brasil permite.
A letra é estática, enquanto a interpretação é dinâmica e dialética a justificar que a lei por vezes seja, na brilhante lição de Carlos Maximiliano, mais sábia do que o legislador. A Lei Maria da Penha é diariamente reescrita por doutrinadores, juízes, advogados, promotores, delegados... que parece, em vista da omissão legislativa, por vezes querer torná-la um símbolo contra a violência doméstica e/ou familiar reiteradas contra o ser humano em geral no Brasil. Ela tem a sua tônica ao ser dirigida ao enfrentamento e supressão da violência contra a mulher. 
Por fim, e com a lembrança dos ensinamentos ainda atuais dos sábios jurisprudentes romanos, entendemos que a Lei Maria da Penha não pode ser adequadamente interpretada sem que sejam observadas as lições consolidadas pela melhor prudência, tais como: benignius leges interpretandae sunt, quo voluntas earum conservetur (as leis devem ser interpretadas mais benignamente, para que se conserve a sua vontade),  favorabilia sunt aplianda, odiosa sunt restringenda (as coisas favoráveis devem ser ampliadas; as odiosas restritas) e por fim, com o destaque que julgamos ser necessário dar,  scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem  (saber as leis não é conhecer suas palavras, mas sim, conhecer a sua força e o seu poder).
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
SOUZA DANTAS, Luís Rodolfo A. de. Hermenêutica constitucional e transponibilidade das cláusulas pétreas in Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 (Artigo publicado na obra "A Lei Maria da Penha: Comentários à Lei nº 11.340 de 07 de agosto de 2006, organizada por Anna Cândida da Cunha Ferraz, Márcia Cristina de Souza Alvim e Margareth Anne Leister. Osasco: EDIFIEO, 2014)

 




Comentários

Claudia Costa disse…
Mais uma vez o Prof Luis Rodolfo nos brinda com uma perfeita análise para a verdadeira aplicação e defesa dos Direitos Humanos. Nem sempre o discurso é suficiente . Às vezes , a Lei menos ainda... Mas sua interpretação adequada à realidade é fundamental.
Luís Rodolfo disse…
Muito obrigado pelas generosas palavras, prezada Professora Claudia Costa, insigne humanista e profunda conhecedora das mais sensíveis e urgentes problemáticas dos Direitos Humanos. Forte abraço, Luís Rodolfo

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