MANDRACOR
COMENTÁRIOS DE CARLOS FELIPE MOISÉS
Meu caro
Rodolfo:
Desculpe-me
demorar tanto tempo para responder a seu convite: não foi falta de interesse,
foi falta dele mesmo, o tempo. Mas agora, já tendo percorrido o repertório
todo, sinto pena de não ter tido o dito tempo, para tê-lo feito antes. Gostei
muito dos seus poemas (acho que você sabe de mim o suficiente para saber que se
não fosse verdade não o diria). Agrada-me sobretudo a contenção, breve ou não
(você é sempre contido, mesmo nos poemas longos), a ironia, o distanciamento
cheio de emoção, e a naturalidade com que você aproxima, invariavelmente, o
corriqueiro do estranho, o banal do inusitado. Talvez por isso (isto é, por ver
neles realizadas em grau máximo essas qualidades), os poemas que mais me tocaram
foram "Pérola e dragão", "Terço" e "Pequena
morte". Além disso, gosto especialmente de belos achados como "bordar
fonemas", "a musa que atira o olho de vidro no copo d'água",
"o amor/tremor que agora nada no lugar", "o ogro gerado no velho
jarro da sala", "uma cavalgada de valquírias na minha sala de
estar" e tantos outros. Gosto menos da fartura adjetival do corvo
"negro, terrível, cadavérico, trágico, fétido". Acho que entendo a
intenção, imagino que seja proposital, mas mesmo assim sinto que não resulta
tão persuasivo como os demais expedientes. Já tratar-se de um corvo que bica
"delicadamente os amendoins torrados" me encanta. Enfim, nada disso é
"juízo" formado, são só impressões de navegante de primeira viagem a
umas terras muito atraentes, que pedem ser viajadas mais vezes. Falar nisso,
quando temos o livro todo em papel? Meu olho velho ainda tem alguma dificuldade
em acompanhar o pergaminho oferecido pelo monitor... Mas nada que me impeça de
lhe mandar um forte abraço, não só de amizade mas de comoção pela sua alta
poesia.
Carlos
Felipe
MACERONTE
Em terras onde o Sol se esconde
no Nada
vive o maceronte, criatura misteriosa e frágil,
que no meio da mata, junto ao momorrengo ávido,
rumoreja, em mundo nenhures, onde a mente falha
No horizonte pálido, vibra o Zerum,
espetáculo cósmico de luz e pó e tempo
enquanto no bosque, dança Amor-Mistério,
ser de encantos coruscantes, plenos
Como é vasto esse reino que brota do vácuo,
com criaturas que encontram um lar no delírio
onde realidade e fantasia tramam, cínicas, seus ditos
Assim, na lira dou vida à visão sem juízo,
e uno seres em etéreas e impossíveis brumas,
plagas de sonhos, e versos sátiros, e nuncas
MOMORRENGO
O MESMO
HERÓI
Não havia
o nome
nenhum
nome é preciso
desde o
nada que havia
tudo era
sem divisa
O alferes
não foi morto
com
certeza repartido
qual pão
que fortalecia
o herói
em ira cívica
A revolução estourou
na sala
de ex-votos
no quarto
das crianças
na praça
dos casais
O inconfidente plantou
esperança no fundo das almas
por Mestre Silvério traídas
por torpes pepitas vendidas
No
entanto há o nome
que aos
poucos reunia
o que
havia de mais valor
em todos
que ali viviam
E o mundo
com certeza entendeu
o que o
nome também continha
justiça,
liberdade, amor
eram, são, serão, primícias
ÚLTIMO TANGO
Bebemos conhaque
o dourado é sépia
amantes se cegam
na película velha
(30 minutos)
E vamos pensando
no claro-escuro
no ventríloquo morte
seu próprio fantoche
(20 minutos)
Enquanto isso
a música erra
a orquestra cisma
tocar de novo:
“Tema Sinistro
pra Breve Tragédia”
(4 minutos)
O tango não chega
ao casal
difuso
BOI OUTRO
Boi solto
no descampado:
liberdade
com seu preço
Passo a passo
boi mascando
tempo-espaço
palavra 'estábulo'
Boi metálico
atravessando
rio de pátina
onde afunda
memória adentro
Dorme ileso
boi rebento
sonhando
movimentos
de moenda
SENHOR E SERVO
O homem em queda
doava terras
perdoava erros
mas não esquecia
por atavismo
de em queda livre
medir o abismo
VICÁRIO
Os olhos
na pia
ainda riem
de seu dono
Édipo torto
ninguém te vela
nem filha há que te leve
às profundezas da terra
Édipo vicário
e órfão desde cedo
só o outro da Tragédia
viu a luz depois de cego
Édipo traído
pelo enredo do delírio
o destino pregou peça
e despreza teu arbítrio
VIS-À-VIS
Guardava o baú
de manifestações de apreço
O cabide
em cedro
no canto
do sótão
O capote
caído
ao lado
da porta
O retrato
de pescoço longo
e olhos-araque
voltado ao chão
Embrulhado
o medo
ESTADO DAS COISAS
Meio-dia
fincado na terra
o homem
dedo em riste
em cima da pedra
braveja desmandos
contra a paisagem:
- Grota, torne-se barca!
- Solo, torne-se vaga!
- Moita, torne-se mata!
- Penha, torne-se águia!
Ventava muito
no dia
em que Versínio
tornou-se cacto
DANTESCO
Prefiro ser o assassino
rasgando a carne de Dante
ao mesmo tempo me torno
Beatrice, do amor-próprio
que larga em Florença fria
as cinzas do que não posso
Se há céu além do verso
afastaram-me a promessa
pra viver em vero estro
o crime, então, confesso
ENTREVISTA
- Pois não sinhô.
Meu trabaio
é arretirá
as viscera
das pedra.
- Pois não sinhô.
Qué oiá?
Qué oiá?
Podi oiá.
É barba pustiça.
- Us trapo di visti?
Ah,us trapu...
essis eu fiz
graças a benfazeja
culheita.
- U sutaqui?
U sutaqui?
Qué oiá?
Qué oiá?
É pustiçu tamém.
- Sem fotograma
sem fotograma
faiz favô
roba a alma.
- Onde mi banhu?
Ah
mi banhu com as lesma
us caramujo
us restu di cumida
as gosma
us cuspi
dentru
da inormi grota
dus inutensílio.
- U próximu
u próximu...
AQUÉM
Rezas
em rosários gastos
o pequeno burgo
levita
Todo voo
é presságio
de outra morte
que termina
Pulsa o páramo
e vacas
despejam leite
dos cimos
Nada escapa
desta graça
(nem a planície
que na ponta
da lança
se equilibra)
ETERNO RETORNO
De novo viso
o visgo limpo
da grandessíssima mãe
que não afaga
afoga-me
em letra líquida
amniótica
ARMORIAL
Ocre
o arado toma posse
do trator
fantasma
A lanterna que sobra
equilibra
o relicáriO
(grão de sal
na falta
do molar
de Santa Rosa)
Lágrimas
virando pátina
o motor conta estalos
e lapsos do solo
Tragado pela terra
rezas
retornam aos corpos
GRAAL
Sombras claras
o corpo flutua na piscina
deitado em colchão de ar
Espirais multiplicam-se na água
e ele despreza
Entoa canções suaves
dessas de brotar infância
Algumas palavras recita:
"A vida é breve
a carne fraca
deixemos o segredo
preso por comportas..."
Gira, gira, gira
A felicidade nos pelos
eriçados
indômitos
O monstro do Lago Ness empurra o colchão
aos quatro cantos do retângulo
ele ri
agradece
oferece um troco
Pousa o grande corvo
que bica
delicadamente
os amendoins torrados
Leve, leve, muito leve
Maracas aquáticas são suas amigas
quer se casar com elas
ter filhos
bordar fonemas
O Sol brilha forte
Artur não percebe
os vapores se desprendendo
o ralo aumentando
rápido
de tamanho
SKORPIOS
Defendemos
a solução adequada
Admitimos
venceu a ignorância
Desistimos
há muito tempo
do ponto ínfimo
sem destino
Somos
incapazes de aceitar
toda e qualquer
pois sempre frívola
metafísica
Criamos
discursos de queda
e restamos
convictos
Gargalhamos
ou mesmo
sérios e safos
cravamos a lâmina
sangrando vazios
PÉROLA E DRAGÃO
Surge
da pérola o dragão
Truões e melipos
ramilhas e gufos
cológulos sardos
dançam em volta
do monstro nascido
Mais que meu filho
serei seus olhos
ao sentir o tédio
de prolongado armistício
POÇA E CIRCUNSTÂNCIA
“Os moradores do Largo do Coração de Jesus, na face da Alameda Barão de Piracicaba, pedem atenção da prefeitura para uma poça de água estagnada que ali existe e muito os incomoda.”
(Largo do Coração de Jesus - 22:05)
2) Uma bicicleta trata de segundos depois, espalhar
o líquido que cismava permanecer, marcialmente, na área disforme aberta no
asfalto.
3) Besouro pousa no 7º rastro aquoso, contado a
partir da calçada de Dona Neuma, do ponto de vista da sarjeta, ou mesmo de quem
surge, da Rua Sebastião Albrunhós.
4) Nascemos olhos, é bom que se diga, e do óbvio
que se constata, forjemos a via, pacífica, possível.
5) E quem surge limpa a sola na umidade restante,
do que antes foi poça, ressurgindo pântano.
6) 22:06 - Velha abre janelas.
MARGOT
Margot Picard
sete anos
menina normanda
ao passar solitária pela praia
encontrou
uma baleia perdida
vira uma
no livro de escola
mas sempre pensou
que fosse mentira
Coçou os olhos
talvez a fome
ou mesmo súbita
febre de gripe
o sol forte
caminhada longa
“Ontem desperta
sonhei ver mendigos”
Então Margot
saia rodada
num ato atira
a lancheira aos abismos
“Dane-se tudo!
o mar
amigas
boneca
pincéis
meu futuro marido!
Se ela existe
só posso eu
ser impossível!”
Margot Picard
olhar mareado
nunca mais
foi vista
1
As traças fizeram suas notas
na partitura da velha senhora
“Adoráveis Tormentas”
(valsa cigana)
O tempo
solfeja
nos bueiros
da pauta
2
Em cima da hora:
dedos tortos no piano
insistem soar a música
mesmo que a casa se apague
e todas as teclas
derretam
PORTANTIQUA
Próxima sala:
“A Estúpida
forma Empalhada”
Lábios risonhos mantidos após o baque
Coxa resistindo flácida no culote engomado
Rosto alvar endurecido antes mesmo de exposto
Olhos que saltam mediante dispositivo eletrônico
Na cadeira Luís Vinte, 'Por que Matar os Pregos', de Claude Nerval
Não tocar na mão retorcida, se a coisa, eventualmente, cumprimentar
Em tempo: taças bocejam
de quatro em quatro horas
Fugir, se for o caso
FERRUGEM
Piedade da noite
desta engrenagem ocre
dos aposentos náuticos
de um arquivo morto
Fios de amianto
encobrem os sinais
do estenótipo
Não-tempo retine
em sons tortos
dos latões de cobre
Um raio
de Lua
aponta
no canto
o trator suspenso
BALADA
A velha musa
se deita
retira
o olho de vidro
que atira
em copo d’água
Olho verde
turmalina
enquanto afunda
vira
o escafandrista
aflito
de cabo - guia
partido
CRANIOLOGIA (MEDICINA LEGAL)
Um cinema antigo está
neste exato momento
projetando documentário
acerca da deformidade
de crânios humanos
e sobre o quanto desviam
do padrão de Michelangelo
Dissertações e metros
analogias com o globo terrestre
prendem a atenção da plateia
que preocupada passa a mão nervosamente
por sobre as cabeças
A imagem marcante:
'O CRIMINOSO NATO'
Platicéfalo
apófise jugular proeminente
saliência temporal acentuada
cavidade orbital enorme
fosseta occipital
Mas ainda resta o corpo
de bruços, na mesa fria
em necrotério de Nápoles
de um tal Fabrício
vinte e três anos
o entregador de flores mortas
PLENA PAULISTA: SAMBA-EXALTAÇÃO
Ainda que consiga
falar a língua de cem
milhões de paulistanos
talvez não entenda
bem a parlenda
de um bandeirante homicida
e do índio-fantasma
de olhos em pânico
só grito
Meu carro claustronauta
singra a Avenida Paulista
plena de anti-maresia
tanta gente
tanta solidão
E veremos
a baleia rompendo
o asfalto fervente
tragando as almas
de piche e dinheiro
devolvendo amores
afogados na gente
13 DE MAIO
Mente paulistanamente
no Bixiga, Bela Vista
onde viu o paesano
requebrando na garoa
pra alegria do poeta
E repete: “Vem repique!”
batucando na caixinha
gingando porque vibra
paulistantamente
entre bambas e braciolas
Amando aquela mina
encarna o italiano
che parla d’uno imbròglio
ali, lá na Osório
tossindo o que respira
Passou uma charrete
ao lado de um chevette
pra lá de futurista
e o samba de buzina
também toca nesta festa
Aos risos de uma gringa
numa noite sem paúra
pés no chão driblando a lida
tatatá-tatá-tatá-tá
o samba não tem hora
FINJO
Acabou-se o tempo
em que podia
trocar meu nome
por compatível
Eis que ele habita
os rins
mandíbula
o baço
o crânio
o fêmur
a língua
Sobra nas sombras
se contorce
e sente
dores terríveis
Ou se expande
linha infinda
corda bamba
negra
íntegra
pra esses passos
de poeta
funâmbula promessa
Ou até arrisca
fugir sem ser visto
retornando molambo
mal escrito
ao corpo que o repele
recebe
(!)
Estúpido
Não era este
era o outro
Pronto
Isso mesmo
Agora devora
O BOM CRIADO : SAMBA ANTI-ABOLICIONISTA
Valho menos
muito menos
que a mais-valia
se torne divina
Não aos aflitos
na luta de classes
quero ser sombra
de quem exorciza
em mim o ócio
com dignidade
Não à demanda
não à justiça
o salário: ao diabo
trabalho é
profissão de fé
VERSÃO OFICIAL
Do outro lado do rio
o poeta sonha uma peça
pra nunca esboçar um único ato
Neste lado o tempo corre ao acaso
e o velho alferes
sem forca ou astro
lamenta à sombra do junco:
“Tomei a nuvem por Juno”
Tinha o pacto com seu oposto:
um viso arisco e o passo torto
Tinha o amargo do rei deposto
antes do posto: a queda em sonho
tinha a bravata, mas não a barba
- cara sem cara, Coroa e Coroa
palavras de um outro
na voz desse morto
ESTOU/ESTÁ
Fica
não fica
Não rime
alma com falta
Prossigo
Prossiga
MANO
O sapato
desamarrado
e ele se dobra
Indeciso laço
(o mesmo
aprendido no primário)
Um deus pedestre
pensou que pra ele
se curvasse
POEMA QUE ABRE LIVRO INFANTIL QUE ENSINA PASSAGEM
DO TEMPO NUM BAIRRO DA CIDADE DE SÃO PAULO
1
A hélice dispara
o avião decola
um quepe aterriza
nos desenhos da filha
o avô pilota
teco-teco abóbora
passou rasante
não sei se volta
2
A nuvem
também é o carneiro
a bigorna
o perfil
o biltre
a bola boba
3
Circo e altar
mundo transparente
o engenheiro ouve
silêncio na música
4
Fim e começo
discutiam o casamento
celebrado quando em sempre
terminado desde nunca
ANCESTRAL
O bisavô
lecionava Lógica
em Coimbra
Ao que parece
viajou do Nilo
ao Bósforo
Quando soube
dos minutos contados
lembrou-se da sova
levada na escola
Nada dormia
e então somava
puídas
superações
O tiro certeiro
ainda anima
as festas de família
ANTEPROJETO
Nunca mais atirar
daguerreótipos contra a parede
trisavôs
surgirão aos berros
Então veio:
- Vermute?
- Duas pedrinhas
Servi
Ao se acalmar
olhou-me de cima
a baixo
apontou-me as ridículas orelhas de abano
a magreza insuportável
os óculos quebrados
que acentuariam
as medidas
pouco harmônicas
de minha cara
Lamentou profundamente
os zigomas na face:
“Silviculares
rudes
que neto meu ousou
deitar com selvagem?”
Disse mais:
“Vossos colarinhos
ficariam muito bem
em certos integrantes
da horda”
Encarava-me
Antes de voltar
indicou-me um alfaiate
Lâmpadas
rebentaram
OS GESTOS
Quarto
três
por quatro
pencas de pétalas
ao assoalho
cheiro de chumbo
antanho
música pousa
pétalas voam
No espaço ao lado
almas
lançam dardos
em dia
iridescente
A tela do quadro:
cubo de gelo
'Solo de Tundra'
Frio estio
não esteio
ANCHO
Lembro bem
nariz adunco
bebia nada
em cálice de estanho
não terminou de escrever:
'Átomo, Pranto,
com Sentimentos Anchos'
ESPAÇO
A cama não se moveu durante a noite
A lâmpada no teto
perpendicular ao centro do travesseiro:
nenhum milímetro
sutil
de desvio
A porta, lá
- os mesmo ângulos formados
entre cabeceira
cômoda
batente
pente
O corpo
nesta altura
vibrátil
transparente
PASSAGEM
Passar a ferro a camisa
correr a gola
gritar:
'Perfídia!'
Grampo
no cabelo das tormentas
Passar a fundo
dizimar as pregas
vestir do avesso
deixá-lo aceso
- o ferro
VELHO TEMA
1
Inicialmente
vazar os olhos
deixar que a mão
se aproxime por trás
Trêmula
sem glosa
aponta para o corte
(o esqueleto desova)
- Até aqui
enjoo
pássaros coxos devorando promessas
luzes na mácula -
1.1
Então
encarar dois mil medos
Um deles:
velho tigre
flamejante
qual medonho morcego
1.2
Força
força
a lira contra a parede
três musas me esgoelam
fórceps se lembram
RICORSO
Tenso ricorso
onde me arrasto
juntando o que
resta do mundo
compondo
entre enfado e virtude
algum pseudo
verso profundo
Tenso ricorso
onde não domo
a grande fera
que surge no túnel
ligando
o umbigo do sonho
à alma do autor
meio-lume
O INVENTOR E O CONVIDADO
Um outro poema
estaria na página
antes
que o copo entornasse
(vinho tinto
francês finíssimo
perdi a chance
do arremate)
Tudo
corria tão bem:
“Montanhas aladas”
“Lobos de fraque”
Mas a palavra
escondeu-se na mancha
de minha calça
(vinco impecável)
À minha frente
conviva discreto
recitava baladas
de um tal Charles Haydn
A voz dizia
todos os versos
que eu com certeza
teria inventado
Um outro poema
seria no fundo
caso este não fosse
primeiro
e último
JUBARTE
Focenas, belugas e narvais
testemunharam
a grande façanha
Com duração entre
um instante
e um eterno
a jubarte criou
a melodia máxima
Consta que a velha jubarte
criou a música
por puro deleite
(não buscou atrair as fêmeas
ou humilhar
os machos da área)
Em Abrolhos
a barcaça atracada
ressoa no casco
os bemóis mais perfeitos
Na superfície o tolo
artista frustrado
transfere as notas
precariamente
para a pauta
POEMA MERCADORIA
Há uma eficácia
no bom poema curto
Digo:
quase nulo
Necessário polir
aguerridamente
até atingir
a serena
inexistência
NO INÍCIO
Anote ali
de novo
o primeiro risco
escrito
aquele tornado
amuleto culpado
Escreva!
Rápido!
Pronto
Tudo apagado
BANAL
Surge
a metáfora
fácil
Vesti-la
estilo
bem raso
Salve
poema óbvio
Leve
leitor errado
TUDO PASSA
Cantávamos muito
A voz era farta
Cá estou
nesta cadeira de jacarandá extinto
duzentos anos depois
esmagando mosquitos
claves de sol
um plaft!
em ré bemol
COMÉRCIO
“Dançar tango flutuando no espaço imitando o som do
silício”
- 12 cadéches
“Punhal de metileno furando a pele d’alma jorrando
pêssegos pernósticos”
- 15 xilégueis
“Sereia cheirando éter criticando os perniciosos
excessos da televisão”
- 5 tarins
“Pena de araque desenhando arabescos no avesso do
vácuo viscoso”
(Mais caro)
- 12 zagreus
“Buraco fundo acabou-se o mundo ops deus escreve
versos rotundos”
- 20,5 copérnicos
PROBLEMA 1
Amor:
espelho d´água
reflete a forma
da cobiçada
musa/nada
(menos óbvia
do que
retocada sempre)
demarca a dúvida
com sintaxe
úmida
da glosa
LIVRO DE L
Ela não percebe
o mundo que acelera
enquanto o coração
sideral, espera
Talvez um dia
repare
meus olhos
leitores à margem
das águas que já
reviraram
as letras de nossas
paragens
repletas de faltas
hipérboles
paragens
Amor cifrado
devore-me
pra voltar
sempre
CÂNTICO
i
Os corpos
enredados
o tálamo
acolhe
O poeta contempla
a forma adorável
Que penso sem pressa
amor
tranquila
e docemente
vasto
ii
As cores de nosso
templo
luzem
todas douradas
como as garras que
resguardam
as portas de nosso
quarto
do grifo que
retiramos
das histórias que
inventava
e deitou
radiante
manso
quando olhou
a tua face
iii
(Inexistente
espaço:
o que é perfeito
não desate)
iv
L
é a letra
mais bela
teu nome
começa
com ela
ilumina
onde inicio
v
Antiga
te vejo
em Santa Sofia
e ao desenhá-la
afino a cantiga:
Pra sempre eu te amo
demais
e sei que não irão
acabar
estes dias em que a
vida é tão bela
pois contigo viro
riso
e feliz navego em
mares
de lugares
impossíveis
E sabe que me
inflamas na paz
do amor que faz
brotar o melhor
no meu coração que
era tão triste
hoje bate em euforia
nosso tempo é
infinito
sei que a morte não
existe
vi
Reparto-me
em mil poemas
mil aedos
lembrando sempre
tua voz
de alguma Eva
nascida antes
por acidente
FESTIM
Lembrança de velas
acesas
ao lado
de tempo – dossel
e canto casado com
repiques
violões
em vôo livre
melodias nunca
ouvidas
tão sublimes
que até Deus
quis tocar
no bandolim
PÊRA E
TRAPÉZIO EM LETRA “P”
A boca
desdobra-se quíntupla
Dedos pisam
os pêlos do avesso
Na parede esquerda:
pêra
Na direita:
trapézio
O lustre
muito antigo
esguelha
A sombra
suspende o leito
que roda
por sobre o tempo
(ao que parece
sangra vibratos)
PEQUENA MORTE
Sofro
não estou contigo
Sinto
o fato de nunca
estarmos visíveis
Embora sejamos
próximos e distantes
amantes e ínfimos
na memória fluida
desse terno abismo
QUEBRANTO EM “V”
Ela
o tempo todo
até quase
aluciná-la
Olhos
vidrados no corpo
e na letra
que abre seu
nome
seguiam
seus passos tão
certos
compunham
canções de marulhos
Ai moça
que abismava
errada
velada
pousando
Ai moça
que eu adorava
não cessa
aquele
quebranto
FALSA BALADA
PRIMITIVA
Amor meu
matemos o tempo
neguemos as letras
cheias de pranto
sejamos apenas
o que orienta
os olhos
atentos
errados | contentes
e a língua em
silêncio
guarde segredo
habita as babéis
do corpo remido
que da
boca líbida
ao pleno espanto
sabe assanhar
todos os livros
então a ideia
e o clímax dela
projetam na
tela
o final do
capítulo
CAMINHO DAS ÍNDIAS
O pensamento inventa
o ludo a libido
não combinada
tabuleiro posto
língua exata
peça do jogo
entre o sopro e a
fala
peça do jogo
entre o vôo e a caça
o sonho calcula
o gozo, a graça
a imagem que dança
ao som de uma raga
corpo-transe
os flancos na face
OU
Os corpos
vararam
a noite-taberna
O infinito
do barril
esvaziado
A razão
dorme no val
Amor
coisa mental
PROBLEMA
2: PRÉ-VÁRZEA
Zenão
enfim jogava
a primeira partida
.
Após o argumento
a esfera foi roubada
por Edmilson:o
Pantera
artilheiro do rival
"Amigos do Santo
Graal"
O globo percorria
fremente
o chão de terra
confirmando o boato
de que tudo
se torna seu
contrário
Fim de jogo:
a pelota antes cheia
por bicão mais
atrevido
tinha esvaziado
Zenão admirava
o capotão de couro
que estático fitava
tranquilamente
a várzea
PETRARCA MUDOU
Era linda
e fria
não era minha
Decidi ser ela
pois era impossível
tê-la comigo
Por isso agora
frágil macho
postiço
torno-me Laura
de vinte e cinco
ARREMEDO
Te adoro
Teodora
tua falta
minha moda
eu sozinho
no caminho
não desisto
de esperar
Tua volta
tua culpa
expiada
em plena rua
o teu corpo
será texto
uma forma
de arremedo
E agora
que nada
renasce
do cinza
as cores
de outrora
quadro
de rifa
Os risos
e gestos
já não
reverberam
restos
de festa
que o tempo
enterra
Te adoro
Teodora
sei que é tarde
fez-se a hora
toda glória
tem seu preço
o da nossa
nem me lembro
Te adoro
Teodora
já vai tarde
não demora
o teu corpo
será texto
uma forma
de arremedo
CAPITU
Rochedo
água salgada
a fúria
rebenta nas festas
(P)
E afundo navios
salvando parábolas
saudosas da terra
papiro imenso
(~P)
Menos borrado
do que
caríssimo leitor
pensa
PROBLEMA 3
Moro
no final do lago
Chama a atenção
a quantidade de
lixo despejado
por construtores de
casas
da dita região
Este tipo
de detrito
toma quase
toda a extensão dessa
estrada
desrespeitando
a metáfora fácil
do grande gesto
literário
Se providências
não forem tomadas
não me responsabilizo
pelo algo
incompreensível
fedendo a falso
EXORCISTA
Vasculhou a pele
e pensou:
“Tenho
aqui o relato
de quem viu
o salto da Lua
em noites
de abraçadiabo
comendo
a fruta danada...”
O exorcista
espargiu a água
benta, pasma
PLÁGIO
Agora se safa
escapa
por entre os dedos
Percorre
a frase por dentro
a carne
maleável do mesmo
O BOM MARQUÊS
Tem sede do vinho que
jorra
das chagas
abertas
no fundo das almas
Lê sangue
e tem a certeza
da dor que antecede
a próxima ideia
Põe venda
nos olhos da busca
quer ser
palavra e fratura
Debocha
das camas amáveis
saúda
o corpo-fantasma
AMOR/TREMOR
O amor rodava em
falso
antes de fincar a
cabeça no torso
Ao que parece
estourava fogos
na avenida, com
papéis trocados
Agora
não sai do lugar
Inventa rugas
pela noite afora
esmaga ossos
de temperança
Não declara:
demanda
Um nada
do nada foi
gerado
no velho jarro
da sala
ETERNO RETORNO
De novo viso
o visgo limpo
da grandessíssima mãe
que não me afaga
afoga-me
em letra líquida
amniótica
POEMETO GÓTICO
Lentamente
meu corpo derrete
Trago comigo
uma tíbia
de Peter Pan
Sorte
ter como amante
o que
não existe
e visita-me
sempre
travestido
de vida
CURARE
A conhecidíssima
Helena Níquel
faz liquidação
pra jovens sem uso
Cobra
um frasco de rímel
Faces imberbes
são sempre bem-vindas
Culpados de fato
mais caro
Aos sábados
curare
FINAL
( )
espaço reservado
ao leitor que some
capaz de escrever
seu próprio nome
em que um é igual a zero
e a causa é o vazio
que se torne
ALEGORIA
A
escola de samba desfilava
sua
última alegoria
atônito,
o público assistia
o
fim da história
a
perder de vista
E a velha vida
que
mudou de pista
aos
solavancos
na
avenida
Sambava
a dor
que
o passista tinha
pois
sua musa
sorria triste
Ao
final do desfile
eram
todos jurados
pelo
erro imprevisto
pelo tempo estourado
Pintura de Lucia de
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