MANDRACOR



  

COMENTÁRIOS DE CARLOS FELIPE MOISÉS 

 

 

Meu caro Rodolfo:

 

Desculpe-me demorar tanto tempo para responder a seu convite: não foi falta de interesse, foi falta dele mesmo, o tempo. Mas agora, já tendo percorrido o repertório todo, sinto pena de não ter tido o dito tempo, para tê-lo feito antes. Gostei muito dos seus poemas (acho que você sabe de mim o suficiente para saber que se não fosse verdade não o diria). Agrada-me sobretudo a contenção, breve ou não (você é sempre contido, mesmo nos poemas longos), a ironia, o distanciamento cheio de emoção, e a naturalidade com que você aproxima, invariavelmente, o corriqueiro do estranho, o banal do inusitado. Talvez por isso (isto é, por ver neles realizadas em grau máximo essas qualidades), os poemas que mais me tocaram foram "Pérola e dragão", "Terço" e "Pequena morte". Além disso, gosto especialmente de belos achados como "bordar fonemas", "a musa que atira o olho de vidro no copo d'água", "o amor/tremor que agora nada no lugar", "o ogro gerado no velho jarro da sala", "uma cavalgada de valquírias na minha sala de estar" e tantos outros. Gosto menos da fartura adjetival do corvo "negro, terrível, cadavérico, trágico, fétido". Acho que entendo a intenção, imagino que seja proposital, mas mesmo assim sinto que não resulta tão persuasivo como os demais expedientes. Já tratar-se de um corvo que bica "delicadamente os amendoins torrados" me encanta. Enfim, nada disso é "juízo" formado, são só impressões de navegante de primeira viagem a umas terras muito atraentes, que pedem ser viajadas mais vezes. Falar nisso, quando temos o livro todo em papel? Meu olho velho ainda tem alguma dificuldade em acompanhar o pergaminho oferecido pelo monitor... Mas nada que me impeça de lhe mandar um forte abraço, não só de amizade mas de comoção pela sua alta poesia.

 

Carlos Felipe

 







MACERONTE

 

Em terras onde o Sol se esconde no Nada

vive o maceronte, criatura misteriosa e frágil,

que no meio da mata, junto ao momorrengo ávido,

rumoreja, em mundo nenhures, onde a mente falha

 

No horizonte pálido, vibra o Zerum,

espetáculo cósmico de luz e pó e tempo

enquanto no bosque, dança Amor-Mistério,

ser de encantos coruscantes, plenos

 

Como é vasto esse reino que brota do vácuo,

com criaturas que encontram um lar no delírio

onde realidade e fantasia tramam, cínicas, seus ditos

 

Assim, na lira dou vida à visão sem juízo,

e uno seres em etéreas e impossíveis brumas,

plagas de sonhos, e versos sátiros, e nuncas


MOMORRENGO

 
 
Durante uma agonia que pensava não ter fim
 
encontrei um momorrengo deambulando no jardim
 
o corpo era mistura de sonho e realidade
 
forma espantosa de um nada-totalidade
 
 
De olhos cegos e fala falaz, sem voz
 
zombava sem dó de minha dor atroz
 
seguia sem rumo, mas com destino certo
 
bicho inquieto, tão falso e tão desperto
 
 
De pele multicor, fascinante, plena patranha
 
a fera se perdera, mui sábia, de sua montanha
 
no entanto cá estava, embora em todo lugar
 
ser que ao mesmo tempo rastejava ao flutuar
 
 
Coisa que devorou meu delírio enquanto pão
 
enigma com resposta, porém sem solução
 
vasto vazio, fugaz, mas sempre o mesmo
 
fez o coração bater rápido, e lento, a esmo 
 
 
E na noite em chiaroscuro fiquei a admirar
 
a beleza medonha, tremenda, familiar
 
do monstro que então, sumiu pelo caminho
 
o estranho íntimo que me tornou, enfim, mais vivo


O MESMO HERÓI

 

Não havia o nome

nenhum nome é preciso

desde o nada que havia

tudo era sem divisa


O alferes não foi morto

com certeza repartido

qual pão que fortalecia

o herói em ira cívica


A revolução estourou

na sala de ex-votos

no quarto das crianças

na praça dos casais


O inconfidente plantou

esperança no fundo das almas

por Mestre Silvério traídas

por torpes pepitas vendidas


No entanto há o nome

que aos poucos reunia

o que havia de mais valor

em todos que ali viviam


E o mundo com certeza entendeu

o que o nome também continha

justiça, liberdade, amor

eram, são, serão, primícias

 

ÚLTIMO TANGO

 

Bebemos conhaque

o dourado é sépia

amantes se cegam

na película velha

(30 minutos)

 

E vamos pensando

no claro-escuro

no ventríloquo morte

seu próprio fantoche

(20 minutos)

 

Enquanto isso

a música erra

a orquestra cisma

tocar de novo:

 

“Tema Sinistro

pra Breve Tragédia”

(4 minutos)

 

O tango não chega

ao casal

difuso

 

BOI OUTRO

 

Boi solto

no descampado:

liberdade

com seu preço

 

Passo a passo

boi mascando

tempo-espaço

palavra 'estábulo'

 

Boi metálico

atravessando

rio de pátina

onde afunda

memória adentro

 

Dorme ileso

boi rebento

sonhando

movimentos

de moenda


SENHOR E SERVO

 

O homem em queda

doava terras

perdoava erros

mas não esquecia

por atavismo

de em queda livre

medir o abismo

 

VICÁRIO


Os olhos

na pia

ainda riem

de seu dono

 

Édipo torto

ninguém te vela

nem filha há que te leve

às profundezas da terra

 

Édipo vicário

e órfão desde cedo

só o outro da Tragédia

viu a luz depois de cego

 

Édipo traído

pelo enredo do delírio

o destino pregou peça

e despreza teu arbítrio

 

VIS-À-VIS

 

Guardava o baú

de manifestações de apreço

 

O cabide

em cedro

no canto

do sótão

 

O capote

caído

ao lado

da porta

 

O retrato

de pescoço longo

e olhos-araque

voltado ao chão


Embrulhado

o medo

 

ESTADO DAS COISAS

 

Meio-dia

fincado na terra

o homem

dedo em riste

em cima da pedra

braveja desmandos

contra a paisagem:

 

- Grota, torne-se barca!

- Solo, torne-se vaga!

- Moita, torne-se mata!

- Penha, torne-se águia!

 

Ventava muito

no dia 

em que Versínio

tornou-se cacto

 

DANTESCO 

 

Prefiro ser o assassino

rasgando a carne de Dante

ao mesmo tempo me torno

Beatrice, do amor-próprio

que larga em Florença fria

as cinzas do que não posso


Se há céu além do verso

afastaram-me a promessa

pra viver em vero estro 

o crime, então, confesso

  

ENTREVISTA

 

- Pois não sinhô.

Meu trabaio

é arretirá

as viscera

das pedra.

 

- Pois não sinhô.

Qué oiá?

Qué oiá?

Podi oiá.

É barba pustiça.

 

- Us trapo di visti?

Ah,us trapu...

essis eu fiz

graças a benfazeja

culheita.

 

- U sutaqui?

U sutaqui?

Qué oiá?

Qué oiá?

É pustiçu tamém.

 

- Sem fotograma

sem fotograma

faiz favô

roba a alma.

 

- Onde mi banhu?

Ah

mi banhu com as lesma

us caramujo

us restu di cumida

as gosma

us cuspi

dentru

da inormi grota

dus inutensílio.

 

- U próximu

u próximu...

 

AQUÉM

 

Rezas

em rosários gastos

o pequeno burgo

levita


Todo voo

é presságio

de outra morte

que termina


Pulsa o páramo

e vacas

despejam leite

dos cimos


Nada escapa

desta graça

(nem a planície

que na ponta

da lança

se equilibra)

 

ETERNO RETORNO

 

De novo viso

o visgo limpo

da grandessíssima mãe

que não afaga

afoga-me

em letra líquida

amniótica

 

ARMORIAL

 

Ocre

o arado toma posse

do trator 

fantasma

 

A lanterna que sobra

equilibra

o relicáriO

(grão de sal

na falta

do molar

de Santa Rosa)

 

Lágrimas

virando pátina

o motor conta estalos

e lapsos do solo


Tragado pela terra

rezas 

retornam aos corpos

 

GRAAL

 

Sombras claras

o corpo flutua na piscina

deitado em colchão de ar

 

Espirais multiplicam-se na água

e ele despreza

 

Entoa canções suaves

dessas de brotar infância

 

Algumas palavras recita:

"A vida é breve

a carne fraca

deixemos o segredo

preso por comportas..."

 

Gira, gira, gira

 

A felicidade nos pelos

eriçados

indômitos

 

O monstro do Lago Ness empurra o colchão 

aos quatro cantos do retângulo

ele ri

agradece

oferece um troco

 

Pousa o grande corvo 

que bica

delicadamente

os amendoins torrados

 

Leve, leve, muito leve

 

Maracas aquáticas são suas amigas

quer se casar com elas

ter filhos

bordar fonemas

 

O Sol brilha forte

Artur não percebe

os vapores se desprendendo

o ralo aumentando

rápido

de tamanho

 

 

SKORPIOS

 

Defendemos

a solução adequada

 

Admitimos

venceu a ignorância

 

Desistimos

há muito tempo

do ponto ínfimo

sem destino


Somos

incapazes de aceitar

toda e qualquer 

pois sempre frívola

metafísica

 

Criamos 

discursos de queda

e restamos

convictos

 

Gargalhamos

ou mesmo

sérios e safos

cravamos a lâmina

sangrando vazios

 

 

PÉROLA E DRAGÃO

 

Surge

da pérola o dragão

 

Truões e melipos

ramilhas e gufos

cológulos sardos

dançam em volta

do monstro nascido

 

Mais que meu filho

serei seus olhos

ao sentir o tédio

de prolongado armistício

 

POÇA E CIRCUNSTÂNCIA

 

“Os moradores do Largo do Coração de Jesus, na face da Alameda Barão de Piracicaba, pedem atenção da prefeitura para uma poça de água estagnada que ali existe e muito os incomoda.”

 

(Largo do Coração de Jesus - 22:05)

 

 1) Adolescente lépida, voltando de curso noturno, salta a poça d’água, nela resvalando, levemente, o calcanhar.

2) Uma bicicleta trata de segundos depois, espalhar o líquido que cismava permanecer, marcialmente, na área disforme aberta no asfalto.

3) Besouro pousa no 7º rastro aquoso, contado a partir da calçada de Dona Neuma, do ponto de vista da sarjeta, ou mesmo de quem surge, da Rua Sebastião Albrunhós.

4) Nascemos olhos, é bom que se diga, e do óbvio que se constata, forjemos a via, pacífica, possível.

5) E quem surge limpa a sola na umidade restante, do que antes foi poça, ressurgindo pântano.

6) 22:06 - Velha abre janelas.

 

MARGOT

 

Margot Picard

sete anos

menina normanda

ao passar solitária pela praia

encontrou

uma baleia perdida

vira uma

no livro de escola

mas sempre pensou

que fosse mentira

 

Coçou os olhos

talvez a fome

ou mesmo súbita

febre de gripe

o sol forte

caminhada longa

“Ontem desperta

sonhei ver mendigos”

 

Então Margot

saia rodada

num ato atira

a lancheira aos abismos

“Dane-se tudo!

o mar

amigas

boneca

pincéis

meu futuro marido!

Se ela existe

só posso eu

ser impossível!”

 

Margot Picard

olhar mareado

nunca mais

foi vista

 

 

 

 

 

 VALSA CIGANA

 

1

 

As traças fizeram suas notas

na partitura da velha senhora

“Adoráveis Tormentas”

(valsa cigana)

 

O tempo

solfeja

nos bueiros 

da pauta

 

2

 

Em cima da hora:

dedos tortos no piano

insistem soar a música

mesmo que a casa se apague

e todas as teclas

derretam

 

PORTANTIQUA

 

Próxima sala:

 

“A Estúpida

forma Empalhada”


Lábios risonhos mantidos após o baque

Coxa resistindo flácida no culote engomado

Rosto alvar endurecido antes mesmo de exposto

Olhos que saltam mediante dispositivo eletrônico

Na cadeira Luís Vinte, 'Por que Matar os Pregos', de Claude Nerval

Não tocar na mão retorcida, se a coisa, eventualmente, cumprimentar

Em tempo: taças bocejam 

de quatro em quatro horas

Fugir, se for o caso

 

FERRUGEM

 

Piedade da noite

desta engrenagem ocre

dos aposentos náuticos

de um arquivo morto

 

Fios de amianto

encobrem os sinais

do estenótipo

 

Não-tempo retine

em sons tortos

dos latões de cobre

 

Um raio

de Lua

aponta

no canto

o trator suspenso

 

 

BALADA

 

A velha musa

se deita

retira

o olho de vidro

que atira

em copo d’água

 

Olho verde

turmalina

enquanto afunda

vira

o escafandrista

aflito

de cabo - guia

partido

 

 

 

 

 

 

 

CRANIOLOGIA (MEDICINA LEGAL)

 

Um cinema antigo está

neste exato momento

projetando documentário

acerca da deformidade

de crânios humanos

e sobre o quanto desviam

do padrão de Michelangelo

 

Dissertações e metros

analogias com o globo terrestre

prendem a atenção da plateia

que preocupada passa a mão nervosamente

por sobre as cabeças

 

A imagem marcante:

'O CRIMINOSO NATO'

 

Platicéfalo

apófise jugular proeminente

saliência temporal acentuada

cavidade orbital enorme

fosseta occipital

 

Mas ainda resta o corpo 

de bruços, na mesa fria

em necrotério de Nápoles

de um tal Fabrício

vinte e três anos 

o entregador de flores mortas

 

 

PLENA PAULISTA: SAMBA-EXALTAÇÃO

 

Ainda que consiga

falar a língua de cem

milhões de paulistanos

talvez não entenda

bem a parlenda

de um bandeirante homicida

e do índio-fantasma

de olhos em pânico

só grito

 

Meu carro claustronauta

singra a Avenida Paulista

plena de anti-maresia

tanta gente

tanta solidão

 

E veremos

a baleia rompendo

o asfalto fervente

tragando as almas

de piche e dinheiro

devolvendo amores

afogados na gente

 

13 DE MAIO

 

Mente paulistanamente

no Bixiga, Bela Vista

onde viu o paesano

requebrando na garoa

pra alegria do poeta

 

E repete: “Vem repique!”

batucando na caixinha

gingando porque vibra

paulistantamente

entre bambas e  braciolas

 

Amando aquela mina

encarna o italiano

che parla d’uno imbròglio

ali, lá na Osório

tossindo o que respira

 

Passou uma charrete

ao lado de um chevette

pra lá de futurista

e o samba de buzina

também toca nesta festa

 

Aos risos de uma gringa

numa noite sem paúra

pés no chão driblando a lida

tatatá-tatá-tatá-tá

o samba não tem hora

 

 

FINJO 

 

Acabou-se o tempo

em que podia

trocar meu nome

por compatível

 

Eis que ele habita

os rins

mandíbula

o baço

o crânio

o fêmur

a língua

 

Sobra nas sombras

se contorce

e sente

dores terríveis

 

Ou se expande

linha infinda

corda bamba

negra

íntegra

pra esses passos

de poeta

funâmbula promessa

 

Ou até arrisca

fugir sem ser visto

retornando molambo

mal escrito

ao corpo que o repele

recebe

 

 

(!)

 

Estúpido

Não era este

era o outro

Pronto

 

Isso mesmo

 

Agora devora

 

 

O BOM CRIADO : SAMBA ANTI-ABOLICIONISTA

 

Valho menos

muito menos

que a mais-valia

se torne divina

 

Não aos aflitos

na luta de classes

quero ser sombra

de quem exorciza

em mim o ócio

com dignidade

 

Não à demanda

não à justiça

o salário: ao diabo

trabalho é

profissão de fé

 

 

VERSÃO OFICIAL

 


 

Do outro lado do rio

o poeta sonha uma peça

pra nunca esboçar um único ato

 

Neste lado o tempo corre ao acaso

e o velho alferes

sem forca ou astro

lamenta à sombra do junco:

“Tomei a nuvem por Juno”


Tinha o pacto com seu oposto:

um viso arisco e o passo torto

 

Tinha o amargo do rei deposto

antes do posto: a queda em sonho

tinha a bravata, mas não a barba

- cara sem cara, Coroa  e Coroa

palavras de um outro 

na voz desse morto

 

 

ESTOU/ESTÁ

 

Fica

não fica

 

Não rime

alma com falta

 

Prossigo

 

Prossiga

 

 

MANO 

 

O sapato

desamarrado

e ele se dobra

Indeciso laço

(o mesmo

aprendido no primário)

 

Um deus pedestre

pensou que pra ele

se curvasse

 

 

POEMA QUE ABRE LIVRO INFANTIL QUE ENSINA PASSAGEM DO TEMPO NUM BAIRRO DA CIDADE DE SÃO PAULO 

 

1

 

A hélice dispara

o avião decola

um quepe aterriza

nos desenhos da filha

o avô pilota

teco-teco abóbora

passou rasante

não sei se volta

 

 

2

 

A nuvem

também é o carneiro

a bigorna

o perfil

o biltre

a bola boba

 

3

 

Circo e altar

mundo transparente

o engenheiro ouve

silêncio na música

 

4

 

Fim e começo

discutiam o casamento

celebrado quando em sempre

terminado desde nunca

 

 

ANCESTRAL

 

O bisavô

lecionava Lógica

em Coimbra

 

Ao que parece

viajou do Nilo

ao Bósforo

 

Quando soube

dos minutos contados

lembrou-se da sova

levada na escola

 

Nada dormia

e então somava

puídas

superações

 

O tiro certeiro

ainda anima

as festas de família

 

 

ANTEPROJETO

 

Nunca mais atirar

daguerreótipos contra a parede

trisavôs

surgirão aos berros

 

Então veio:

- Vermute?

- Duas pedrinhas

Servi

 

Ao se acalmar

olhou-me de cima

a baixo

apontou-me as ridículas orelhas de abano

a magreza insuportável

os óculos quebrados

que acentuariam

as medidas

pouco harmônicas

de minha cara

 

Lamentou profundamente

os zigomas na face:

“Silviculares

rudes

que neto meu ousou

deitar com selvagem?”

 

Disse mais:

“Vossos colarinhos

ficariam muito bem

em certos integrantes

da horda”

 

Encarava-me

 

Antes de voltar

indicou-me um alfaiate

 

Lâmpadas

rebentaram

 

 

OS GESTOS

 

Quarto

três

por quatro

pencas de pétalas

ao assoalho

cheiro de chumbo

antanho

música pousa

pétalas voam

 

No espaço ao lado

almas

lançam dardos

em dia

iridescente


A tela do quadro:

cubo de gelo

'Solo de Tundra'

Frio estio

não esteio

 

ANCHO

 

Lembro bem

nariz adunco

bebia nada

em cálice de estanho

não terminou de escrever:

 

'Átomo, Pranto,

com Sentimentos Anchos'

 

 

ESPAÇO

 

A cama não se moveu durante a noite

 

A lâmpada no teto

perpendicular ao centro do travesseiro:

nenhum milímetro

sutil

de desvio

 

A porta, lá

 - os mesmo ângulos formados

entre cabeceira

cômoda

batente 

pente

 

O corpo

nesta altura

vibrátil

transparente

 

 

PASSAGEM

 

Passar a ferro a camisa

correr a gola

gritar:

'Perfídia!'

 

Grampo

no cabelo das tormentas

 

Passar a fundo

dizimar as pregas

vestir do avesso

deixá-lo aceso

- o ferro

 

 

VELHO TEMA

 

1

 

Inicialmente

vazar os olhos

deixar que a mão

se aproxime por trás

 

Trêmula

sem glosa

aponta para o corte

(o esqueleto desova)

 

- Até aqui

enjoo

pássaros coxos devorando promessas

luzes na mácula -

 

1.1

 

Então

encarar dois mil medos

 

Um deles:

velho tigre

flamejante

qual medonho morcego

 

1.2

 

Força

força

a lira contra a parede

três musas me esgoelam

fórceps se lembram

 

 

 

 

 

RICORSO

 

Tenso ricorso

onde me arrasto

juntando o que

resta do mundo

compondo

entre enfado e virtude

algum pseudo

verso profundo

 

Tenso ricorso

onde não domo

a grande fera

que surge no túnel

ligando

o umbigo do sonho

à alma do autor

meio-lume

 

 

O INVENTOR E O CONVIDADO

 

Um outro poema

estaria na página

antes

que o copo entornasse

(vinho tinto

francês finíssimo

perdi a chance

do arremate)

 

Tudo

corria tão bem:

“Montanhas aladas”

“Lobos de fraque”

 

Mas a palavra

escondeu-se na mancha

de minha calça

(vinco impecável)

 

À minha frente

conviva discreto

recitava baladas

de um tal Charles Haydn

 

A voz dizia

todos os versos

que eu com certeza

teria inventado

 

Um outro poema

seria no fundo

caso este não fosse

primeiro

e último

 

 

JUBARTE

 

Focenas, belugas e narvais

testemunharam

a grande façanha

 

Com duração entre

um instante

e um eterno

a jubarte criou

a melodia máxima

 

Consta que a velha jubarte

criou a música

por puro deleite

(não buscou atrair as fêmeas

ou humilhar

os machos da área)

 

Em Abrolhos

a barcaça atracada

ressoa no casco

os bemóis mais perfeitos

 

Na superfície o tolo

artista frustrado

transfere as notas

precariamente

para a pauta

 

 

POEMA MERCADORIA

 

Há uma eficácia

no bom poema curto

 

Digo:

quase nulo

 

Necessário polir

aguerridamente

até atingir

a serena

inexistência

 

 

NO INÍCIO

 

Anote ali

de novo

o primeiro risco

escrito

aquele tornado

amuleto culpado

 

Escreva!

 

Rápido!

 

Pronto

 

Tudo apagado

 

 

BANAL

 

Surge

a metáfora

fácil

 

Vesti-la

estilo

bem raso

 

Salve

poema óbvio

 

Leve

leitor errado

 

 

TUDO PASSA

 

Cantávamos muito

A voz era farta

Cá estou

nesta cadeira de jacarandá extinto

duzentos anos depois

esmagando mosquitos

claves de sol

um plaft! 

em ré bemol

 

 

COMÉRCIO

 

“Dançar tango flutuando no espaço imitando o som do silício”

- 12 cadéches

 

“Punhal de metileno furando a pele d’alma jorrando pêssegos pernósticos”

- 15 xilégueis

 

“Sereia cheirando éter criticando os perniciosos excessos da televisão”

- 5 tarins

 

“Pena de araque desenhando arabescos no avesso do vácuo viscoso”

(Mais caro)

- 12 zagreus

 

“Buraco fundo acabou-se o mundo ops deus escreve versos rotundos”

- 20,5 copérnicos

 

PROBLEMA 1

 

Amor:

espelho d´água

 

reflete a forma

da cobiçada

musa/nada

 

(menos óbvia

do que

retocada sempre)

 

demarca a dúvida

com sintaxe

úmida

da glosa

 

LIVRO DE L

 

Ela não percebe

o mundo que acelera

enquanto o coração

sideral, espera

 

Talvez um dia repare

meus olhos

leitores à margem

das águas que já reviraram

as letras de nossas paragens

repletas de faltas

hipérboles

paragens

 

Amor cifrado

devore-me 

pra voltar

sempre


CÂNTICO

 

i

 

Os corpos

enredados

o tálamo

acolhe

 

O poeta contempla

a forma adorável

 

Que penso sem pressa

amor

tranquila

e docemente

vasto

 

ii

 

As cores de nosso templo

luzem

todas douradas

como as garras que resguardam

as portas de nosso quarto

do grifo que retiramos

das histórias que inventava

e deitou

radiante

manso

quando olhou

a tua face

 

iii

 

(Inexistente

espaço:

o que é perfeito

não desate)

 


iv

 

L

é a letra

mais bela

teu nome

começa

com ela

ilumina

onde inicio

 

v

 

Antiga

te vejo

em Santa Sofia

e ao desenhá-la 

afino a cantiga:

 

Pra sempre eu te amo demais

e sei que não irão acabar

estes dias em que a vida é tão bela

pois contigo viro riso

e feliz navego em mares

de lugares impossíveis

 

E sabe que me inflamas na paz

do amor que faz brotar o melhor

no meu coração que era tão triste

hoje bate em euforia

nosso tempo é infinito

sei que a morte não existe

 

vi

 

Reparto-me

em mil poemas

mil aedos

lembrando sempre

tua voz

de alguma Eva

nascida antes

por acidente


FESTIM

 

Lembrança de velas acesas

ao lado

de tempo – dossel

 

e canto casado com repiques

violões

em vôo livre

melodias nunca ouvidas

tão sublimes

que até Deus

quis tocar

no bandolim

 


PÊRA E TRAPÉZIO EM LETRA “P”

 

A boca

desdobra-se quíntupla

 

Dedos pisam

os pêlos do avesso

 

Na parede esquerda:

pêra

 

Na direita:

trapézio

 

O lustre

muito antigo

esguelha

 

A sombra

suspende o leito

que roda

por sobre o tempo

(ao que parece

sangra vibratos)

 

PEQUENA MORTE

 

Sofro

não estou contigo

 

Sinto

o fato de nunca

estarmos visíveis

 

Embora sejamos

próximos e distantes

amantes e ínfimos

na memória fluida

desse terno abismo 

 

 

QUEBRANTO EM “V”

 

Ela

o tempo todo

até quase

aluciná-la

 

Olhos

vidrados no corpo

e na letra 

que abre seu nome

seguiam

seus passos tão certos

compunham

canções de marulhos

 

Ai moça

que abismava

errada

velada

pousando

 

Ai moça

que eu adorava

não cessa

aquele

quebranto

 

FALSA BALADA PRIMITIVA

 

Amor meu

matemos o tempo

neguemos as letras

cheias de pranto

sejamos apenas

o que orienta

os olhos atentos 

errados | contentes

e a língua em silêncio

guarde segredo

habita as babéis

do corpo remido

que da boca líbida

ao pleno espanto

sabe assanhar

todos os livros

então a ideia

e o clímax dela

projetam  na tela

o final do capítulo 

 

CAMINHO DAS ÍNDIAS

 

O pensamento inventa

o ludo a libido

não combinada

tabuleiro posto

língua exata

peça do jogo

entre o sopro e a fala

peça do jogo

entre o vôo e a caça

o sonho calcula

o gozo, a graça

a imagem que dança

ao som de uma raga

corpo-transe

os flancos na face

 

OU

 

Os corpos

vararam

a noite-taberna

 

O infinito

do barril

esvaziado

 

A razão

dorme no val

 

Amor

coisa mental

 

PROBLEMA 2: PRÉ-VÁRZEA

 

Zenão

enfim jogava

a primeira partida

.

Após o argumento

a esfera foi roubada

por Edmilson:o Pantera

artilheiro do rival

"Amigos do Santo Graal"

 

O globo percorria

fremente

o chão de terra

confirmando o boato

de que tudo

se torna seu contrário

 

Fim de jogo:

a pelota antes cheia

por bicão mais atrevido

tinha esvaziado

 

Zenão admirava

o capotão de couro

que estático fitava

tranquilamente

a várzea

 

PETRARCA MUDOU

 

Era linda

e fria

não era minha

 

Decidi ser ela

pois era impossível

tê-la comigo

 

Por isso agora 

frágil macho postiço

torno-me Laura

de vinte e cinco

 

ARREMEDO

 

Te adoro

Teodora

tua falta

minha moda

eu sozinho

no caminho

não desisto

de esperar

 

Tua volta

tua culpa

expiada

em plena rua

o teu corpo

será texto

uma forma

de arremedo

 

E agora

que nada

renasce

do cinza

as cores

de outrora

quadro

de rifa

 

Os risos

e gestos

já não

reverberam

restos

de festa

que o tempo

enterra

 

Te adoro

Teodora

sei que é tarde

fez-se a hora

toda glória

tem seu preço

o da nossa

nem me lembro

 

Te adoro

Teodora

já vai tarde

não demora

o teu corpo

será texto

uma forma

de arremedo

 

CAPITU

 

Rochedo

água salgada

a fúria

rebenta nas festas

 

(P)

 

E afundo navios

salvando parábolas

saudosas da terra

papiro imenso

 

(~P)

 

Menos borrado

do que

caríssimo leitor

pensa


PROBLEMA 3


Moro

no final do lago

 

Chama a atenção

 a quantidade de lixo despejado

por construtores de casas

da dita região

 

Este tipo

de detrito

toma quase

toda a extensão dessa estrada

desrespeitando

a metáfora fácil

do grande gesto

literário

 

Se providências

não forem tomadas

não me responsabilizo

pelo algo incompreensível

fedendo a falso

 

EXORCISTA

 

Vasculhou a pele

e pensou:

 

“Tenho

aqui o relato

de quem viu

o salto da Lua

em noites

de abraçadiabo

comendo

a fruta danada...”

 

O exorcista

espargiu a água

benta, pasma

 

 

PLÁGIO

 

Agora se safa

escapa

por entre os dedos

 

Percorre

a frase por dentro

a carne

maleável do mesmo

 


O BOM MARQUÊS

 

Tem sede do vinho que jorra

das chagas abertas 

no fundo das almas

 

Lê sangue

e tem a certeza

da dor que antecede

a próxima ideia 

 

Põe venda

nos olhos da busca

quer ser

palavra e fratura

 

Debocha

das camas amáveis

saúda

o corpo-fantasma

 

AMOR/TREMOR

 

O amor rodava em falso

antes de fincar a cabeça no torso

 

Ao que parece estourava fogos

na avenida, com papéis trocados

 

Agora

não sai do lugar

 

Inventa rugas

pela noite afora

esmaga ossos

de temperança

 

Não declara:

demanda

 

Um nada

do nada foi gerado

no velho jarro

da sala

 

ETERNO RETORNO

 

De novo viso

o visgo limpo

da grandessíssima mãe

que não me afaga

afoga-me

em letra líquida

amniótica

 

POEMETO GÓTICO

 

Lentamente

meu corpo derrete

 

Trago comigo

uma tíbia

de Peter Pan

 

Sorte

ter como amante

o que

não existe

e visita-me

sempre

travestido

de vida

 

 

CURARE

 

A conhecidíssima Helena Níquel

faz liquidação

pra jovens sem uso

 

Cobra

um frasco de rímel

 

Faces imberbes

são sempre bem-vindas

 

Culpados de fato

mais caro

 

Aos sábados

curare

 

FINAL

 

( )

 

espaço reservado

ao leitor que some

capaz de escrever

seu próprio nome

em que um é igual a zero

e a causa é o vazio

que se torne


ALEGORIA


A escola de samba desfilava

sua última alegoria

atônito, o público assistia

o fim da história

a perder de vista


E a velha vida

que mudou de pista

aos solavancos

na avenida


Sambava a dor

que o passista tinha

pois sua musa

sorria triste


Ao final do desfile

eram todos jurados

pelo erro imprevisto

pelo tempo estourado


Pintura de Lucia de

Souza Dantas - "Cerzindo Uvas", Óleo sobre tela, 2004 Mais:https://ferrazdant.meusitenouol.com.br/paintings-lucia-de-souza-dantas

 

 

 

 



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