I SESSÃO ORDINÁRIA DA ASSEMBLÉIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - 1946 - PRIMEIRA PARTE - EMBAIXADOR LUIZ MARTINS DE SOUZA DANTAS


I Sessão Ordinária da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas
1946
Primeira Parte
Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas


Luiz Martins de Souza Dantas, nascido no Rio de Janeiro, em 17 de fevereiro de 1876. Bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo. Adido de Legação em 2/3/1897. Embaixador em 1/11/19. Duas vezes Ministro de Estado das Relações Exteriores, interino, no período de 1913 a 1917. Serviu como Delegado do Brasil junto à Liga das Nações, em Genebra, em 1924 e 1926. † Paris, em abril de 1954.



Em nome do povo brasileiro e de seu Governo, gostaria, em primeiro lugar, de expressar o quanto meu país é grato a esta augusta Assembléia pelo sincero voto de confiança que lhe foi dado quando de sua eleição para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Deste modo desejastes registrar vossa simpatia por nossas tradições pacíficas e por nossa contribuição nos sacrifícios incorridos na luta pela liberdade e dignidade humana.

A República dos Estados Unidos do Brasil nunca cessou de trabalhar pela paz e tem a satisfação de ter sido a primeira nação a introduzir em sua Constituição uma cláusula que prescreve arbitragem compulsória para todos os conflitos internacionais. Sua história diplomática foi sempre escrita sob a clara luz do dia e exibe uma sucessão de tratados e acordos selados com o espírito do entendimento e da solidariedade.

Recorreu às armas apenas para colocá-las a serviço da causa geral envolvendo povos cuja independência e integridade territorial estavam ameaçadas. Seu sangue foi misturado ao dos Aliados, seus recursos foram postos à disposição de todos, e seu único desejo foi o de servir à causa da paz internacional e da segurança coletiva.

É devido à força desses méritos e em nome de nossos soldados que deram suas vidas pela vitória comum que nos posicionamos ao vosso lado para trabalhar pela reconstrução, dever de todos nós. Tendo em vista esta finalidade, não pouparemos esforços e nem haverá dificuldade que nos faça recuar. A tarefa a ser cumprida é por demais fina e nobre para que sejam admitidos pensamentos impuros ou preocupações menores. Assumimos sinceramente todas as obrigações que nossa posição nas Nações Unidas possa implicar.

O problema que se coloca agora diante dos povos que tenham passado pelo teste de terríveis catástrofes é o de substituir o interesse próprio, excludente dos direitos de terceiros, por uma avaliação de deveres mútuos. Segundo a admirável frase de São Paulo, somos todos membros uns dos outros. Portanto, esforços coletivos deveriam ser coordenados para que se preserve e aperfeiçoe a sociedade humana considerada como uma unidade indivisível da qual as diversas nações são necessariamente órgãos constituintes. Se preciso for, para a obtenção desta unidade, cada nação deve aprender a subordinar sua soberania ao interesse prevalecente da humanidade como um todo; e se, dentre as Nações Unidas, há algumas mais poderosas que outras, tal superioridade deve servir apenas para produzir maior devoção à causa comum.

Somos chamados a construir uma organização muito promissora, mas não nos esqueçamos, ao iniciarmos este grande trabalho, da lição vinda do passado. Nenhuma força estritamente temporal pode ter a expectativa de pôr um termo às disputas internacionais. Antes que as armas se calem para sempre, o coração do homem deve ser desarmado; deve ser drenado de todos os preconceitos quanto a raça, nacionalidade e religião; deve ser purgado dos pecados da ambição e do orgulho; devendo ser preenchido, em lugar disso, de esperança e sentimento fraterno. Deve- se erigir um sistema de moralidade internacional, extraído de todo o tipo de força espiritual, e deverá ser esta a moralidade orientadora dos tratados e acordos políticos do mundo de amanhã.

Mais do que nunca, uma comunidade intelectual torna-se urgentemente necessária para a constituição de uma verdadeira assembléia de nações. Cuidemos para que ela seja construída sem interferência política e que se fundamente tanto nos grandes movimentos religiosos que brotaram dos ensinamentos de Cristo, Maomé, Buda e Confúcio, quanto na contribuição laica de poetas, filósofos e cientistas de todos os países. Sem o apoio de uma opinião pública bem informada e livre, qualquer tentativa de uma organização internacional provar-se-ia ilusória, principalmente no presente momento, em que as forças materiais liberadas pelo gênio humano já ameaçam alcançá-lo. O homem se prepara para manejar uma energia cósmica, e se não for treinado corretamente para isso, poderá ser tragado por ela. Ainda por algum tempo, as armas secretas provenientes desta energia poderão permanecer ocultas. Mas seria leviano pensar que se trata de uma solução definitiva: descobertas científicas não são privilégio de um único povo ou grupo. Assim que, dados os primeiros passos, seja alcançado um determinado estágio, estas descobertas irão surgir simultaneamente em várias mentes. A história tem provado isso reiteradas vezes.

Desviados os perigos que a liberação da energia atômica traz para as relações internacionais, não resta alternativa senão o desenvolvimento da fraternidade humana por todos os meios intelectuais e morais a nossa disposição. A Carta das Nações Unidas aponta claramente o caminho a ser tomado ao posicionar o Conselho Econômico e Social lado a lado com o Conselho de Segurança. Contanto que aquele honre seus compromissos, é de se esperar que este jamais terá de intervir. Tenho esperança ardente de que continuará sendo, como tem sido, um escudo que ninguém ousará atacar.

A máxima segundo a qual o perturbador da paz está sempre errado é a que deve guiar as Nações Unidas. Quem quer que procure interromper a paz, semear discórdia entre nações, ou promover uma guerra de nervos, será doravante subjugado pela inabalável determinação de todos os que têm sofrido as amarguras da guerra e que resolveram nunca mais admitir que semelhante catástrofe ocorra.

Em termos políticos, há cinqüenta e um países diferentes representados nesta Assembléia; poder-se-á dizer que nosso trabalho obteve êxito se, ao partirmos, nossos países formarem uma única casa espiritual. Deste modo, o homem terá feito a sua maior conquista, e poderemos nos reunir em um esforço comum na eliminação dos três grandes castigos que no momento nos dividem e oprimem: a guerra, a doença e a necessidade.

Um único pensamento deve inspirar nossas ações no sentido de se estabelecer a Organização das Nações Unidas em bases inabaláveis e eu espero que seja o expresso na seguinte máxima: Communis humanitatis causa.

Muito obrigado.

Londres, em 10 de janeiro de 1946.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A ANTROPOFAGIA SURREALISTA DE TARSILA DO AMARAL

MANDRACOR

FORMAS DE RACIONALIDADE: LÓGICA, DIALÉTICA, RETÓRICA E POÉTICA