DO REGIONAL AO MUNDIAL: GEOCRACIA E DIREITOS HUMANOS
DO REGIONAL AO MUNDIAL: GEOCRACIA
E DIREITOS HUMANOS
Prof. Dr. Luís Rodolfo Ararigboia de Souza Dantas
INTRODUÇÃO
Viável é o que pode ser percorrido, que
é transitável, ou não oferece obstáculos. Afirmar a viabilidade de alguma coisa
importa a utilização de expressão sinônima: "executável". Ou seja, de
algo que possa ser realizado. Pondero, de início, que a definição dos
arcabouços de um governo mundial, estruturado por meio de uma Constituição que
acolha o universal-singular, em pluralismo multicultural-nacional, pautada esta
forma de Lei Maior na dignidade da pessoa e no princípio da manutenção da
qualidade de vida planetária, é tanto referência utópica na condição de
impossível nenhures quanto, ao menos, salutar exercício de natureza
filosófico-conceitual de algo que quiçá se concretize, ao menos parcialmente,
enquanto tradução e realização de anseios de existência de um efetivo
cosmopolitismo integrado à realidade de uma república terrena de convivência
pacífica entre diferenças extremas e igualdades máximas, em meio-ambiente de
harmoniosa Gaia onde o funcionamento de um Tribunal Constitucional Mundial
seria uma das exigências centrais.
Concretamente, a realização do “mínimo
possível” para a configuração tênue de um governo mundial formalmente
constitucionalizado demandaria a solução da mais complexa das indagações de
natureza ético-jurídica: seria a humanidade capaz de formar um consenso acerca
da necessidade de um pacto que enfrente as necessidades de soluções
institucionais afirmadoras da preponderância da dignidade humana, valor
fundante de uma ordem jurídico-constitucional mundial e de um modelo de Estado
que, conjecturamos, ultrapassaria ou mesmo negaria as noções tradicionais do
conceito para apresentar-se como unidade político-jurídica estável planetária
e geocraticamente organizada?
Ou seja: hipoteticamente, estamos
aventando a possibilidade do ser humano e das instituições públicas e privadas,
de caráter nacional ou internacional, unitarizadas, comunitarizadas,
federalizadas - entre outras formas estatais pretéritas, presentes ou que
surgirão pela necessidade de novos arranjos para a efetivação de interesses individuais,
coletivos e difusos transnacionais - necessitarem de mecanismos que permitam o
enfrentamento e atendimento de graves demandas de caráter planetário visando a
proteção da vida e da dignidade do ser humano, com observância do direito à
paz, mecanismos estes próprios a organismos e funções que integrem ao menos os
clássicos três poderes ou órgãos executivo, legislativo e judiciário deste
Estado mundial democrático que, para estas reflexões encontra-se mergulhado em
forte ‘utopismo’ (sendo este ao menos a representação do exercício da liberdade
da compreensão utópica da vida ou mesmo transtópica da existência, para marcar
um lugar além e possível, onde direitos e deveres máximos viriam articulados a
uma educação voltada à aceitação do outro, alicerçada na prática da tolerância
e, mais além, viabilizadora de uma paradoxal compreensão: o outro idêntico e
tão singularmente distinto do sujeito integrado ao mundo da vida em ambiente
universal).
As problemáticas acima são passíveis de
receber outros encaminhamentos especulativos e teóricos ao tentarmos extrair
deste exercício carregado de variáveis probabilísticas, permeado de paradoxos e
graves aporias, proposições dotadas de alguma voltagem de verdade ou
plausibilidade. Podemos, à luz de elementos pretéritos e atuais, conjecturar a
gradativa transformação das sociedades político-estatais e não-estatais em
realidades justificadoras da existência de uma ordem jurídica universal,
consagradora de um tribunal mundial, um poder legiferante e Executivo moldados no
âmbito de uma Constituição mundial.
Outrossim, ao admitirmos a
possibilidade de um Estado mundial constitucional somos levados a inferir que
os entes estatais envolvidos em sua composição terão que abdicar total ou
parcialmente de suas soberanias (parcialmente por não estabelecermos como
premissa necessária de eventual governo mundial a necessidade de uma fusão de
Estados nacionais que passariam a compor um novo Estado soberano, dotado,
finalmente, de um ordenamento de organização fundamental).
O presente estudo reflete a aceitação
do desafio de se pensar os limites e possibilidades de um Estado mundial
constitucionalmente configurado, sem que tenhamos a pretensão de produzir
afirmações definitivas a respeito de tão complexa e elevada temática, mas com a
afirmação de que talvez tenhamos hoje maiores e melhores condições para o
reconhecimento de uma condição postergada excessivamente: a cidadania mundial.
I) ALGUNS PRECEDENTES DA IDEIA DE CONSTITUIÇÃO MUNDIAL E DE
CIDADANIA COSMOPOLITA
No ano de 1948, foi impresso na
revista Common Cause, da Universidade de Chicago, o assim
chamado Projeto preliminar de uma Constituição mundial. De
acordo com a intenção de seus autores, tratava-se de uma proposta à História,
que tenderia a estimular outros estudos e discussões.
À época, o grande fator que
pautava a reflexão acerca da instauração de um Estado mundial
constitucionalmente estruturado era a experiência traumática de uma guerra que,
poucos anos antes, dizimara milhares de vidas humanas, o que colocava em pauta a
necessidade de modos de controle e fixação de princípios aos Estados que,
dentro de um novo modelo de organização mundial, deveriam mobilizar esforços
para a obtenção de uma paz duradoura. Neste sentido, Flávia Piovesan[1] cita este fato como corroborante do
movimento de internacionalização dos direitos humanos que atualmente
presenciamos operando com intensa atividade:
“O movimento de internacionalização dos direitos humanos constitui um
movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra,
como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. A
era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa
humana, o que resultou no extermínio de 11 milhões de pessoas. O legado do
nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de
sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça - a raça pura ariana. É
nesse cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos,
como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos
humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução.”
Alguns anos antes da publicação do
citado projeto de Constituição mundial, mais precisamente em 1944, Mortimer
Adler, um dos autores deste plano constitucional, havia publicado o livro Como
pensar sobre a guerra e a paz [2], no qual sustentava, de modo bastante
persuasivo, que o Governo Mundial seria o único meio eficaz para assegurar o
convívio pacífico entre os povos.
Ainda na esteira desta perspectiva que
fundamentava, na concepção de seus defensores, a ideia de uma integração
governamental dos Estados, escreve Jacques Maritain em sua obra O homem e
o Estado [3] estas palavras que ganham nos
dias de hoje uma expressiva atualidade:
“O fato fundamental é a interdependência, já hoje indiscutível, das
nações, fato esse que não é garantia alguma de paz, como muita gente por certo
acreditou, por querer acreditar, mas antes uma expectativa de guerra. Por que
isso? Porque essa interdependência das nações é, por excelência, uma
interdependência econômica, não uma interdependência politicamente organizada,
desejada e construída. Em outros termos, é por ter surgido essa
interdependência em virtude de processos meramente técnicos ou materiais e não
em conseqüência de um processo simultâneo genuinamente político e racional.”
Maritain acreditava que tal
interdependência econômica, por estar baseada em uma estrutura pautada na
soberania das nações, não faria senão exasperar as exigências competitivas e o
orgulho dos Estados, a produzir permanente ameaça para a estabilidade planetária.
Relevante aqui destacar que a Organização das Nações Unidas surge alimentada
pelas pretensões de se construir a paz mundial com base em valores e interesses
que seriam comuns a toda raça humana. O ideário de construção de uma ordem
mundial a partir do amadurecimento e ampliação desta entidade não ficava de
fora dos primeiros discursos que inauguraram os trabalhos da Primeira Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas, ocorrida em 1946, cuja abertura foi realizada pelo embaixador
brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas. Pela importância da
sua fala para o melhor entendimento do que afirmamos acima, transcrevo o
seguinte trecho:
“(...) O problema que se coloca agora diante dos povos que tenham passado
pelo teste de terríveis catástrofes é o de substituir o interesse próprio,
excludente dos direitos de terceiros, por uma avaliação de deveres mútuos.
Segundo a admirável frase de São Paulo, somos todos membros uns dos
outros. Portanto, esforços coletivos deveriam ser coordenados para que se
preserve e aperfeiçoe a sociedade humana considerada como uma unidade
indivisível da qual as diversas nações são necessariamente órgãos
constituintes. Se preciso for, para a obtenção desta unidade, cada
nação deve aprender a subordinar sua soberania ao interesse
prevalecente da humanidade como um todo; e se, dentre as Nações Unidas, há
algumas mais poderosas que outras, tal superioridade deve servir apenas
para produzir maior devoção à causa comum.Somos chamados a construir
uma organização muito promissora, mas não nos esqueçamos, ao iniciarmos
este grande trabalho, da lição vinda do passado. Nenhuma força
estritamente temporal pode ter a expectativa de pôr um termo às disputas
internacionais. Antes que as armas se calem para sempre, o coração do homem
deve ser desarmado; deve ser drenado de todos os preconceitos quanto
a raça, nacionalidade e religião; deve ser purgado dos pecados da ambição
e do orgulho; devendo ser preenchido, em lugar disso, de esperança e
sentimento fraterno. Deve- se erigir um sistema de moralidade
internacional, extraído de todo o tipo de força espiritual, e deverá ser
esta a moralidade orientadora dos tratados e acordos políticos do mundo de
amanhã. Mais do que nunca, uma comunidade intelectual torna-se urgentemente necessária
para a constituição de uma verdadeira assembléia de nações. Cuidemos para
que ela seja construída sem interferência política e que se fundamente
tanto nos grandes movimentos religiosos que brotaram dos ensinamentos de
Cristo, Maomé, Buda e Confúcio, quanto na contribuição laica de poetas,
filósofos e cientistas de todos os países (...). Em termos políticos, há
cinqüenta e um países diferentes representados nesta Assembléia;
poder-se-á dizer que nosso trabalho obteve êxito se, ao partirmos, nossos
países formarem uma única casa espiritual. Deste modo, o homem terá feito
a sua maior conquista, e poderemos nos reunir em um esforço comum
na eliminação dos três grandes castigos que no momento nos dividem e
oprimem: a guerra, a doença e a necessidade.Um único pensamento deve
inspirar nossas ações no sentido de se estabelecer a Organização das
Nações Unidas em bases inabaláveis e eu espero que seja o expresso na
seguinte máxima: Communis humanitatis causa.”(grifo nosso) [4]
Sob fundamentos diversos, vários
autores em épocas distintas defenderam a concretização de um Estado mundial ou
ressaltaram vínculos com uma ordem que ultrapassaria o local citadino e
nacional por ser esta ordem cósmica e/ou mundial. A vocação cosmopolita
expressa pelas palavras do Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas revela uma
postura positiva em relação às diferenças culturais humanas, um desejo de
construção de amplas alianças e comunidades globais iguais e pacíficas de
cidadãos que deveriam ser capazes de respeitarem e se compreenderem para além
das fronteiras nacionais, constituindo autêntica solidariedade universalista.
Em grande medida, parte do incômodo que
o cosmopolitismo gera diz respeito ao seu modo singular de conciliar valores
universais com uma diversidade de posições de sujeitos cultural, singular e
historicamente construídos. As formas clássicas de cosmopolitismo foram
desenvolvidas em um dos períodos mais férteis para o desenvolvimento do
conceito de cosmopolitismo: da expansão do Império de Alexandre Magno aos
primeiros séculos do Império Romano. A formulada por Diógenes, o Cínico,
pregava o desapego de toda e qualquer classe de bens materiais com o objetivo
de viver segundo a natureza e de acordo com a condição de cidadão do mundo.
Neste tocante, para maiores esclarecimentos: [5]
“O ideal de Diógenes de autossuficiência é a fonte de vários outros
conceitos importantes que poderiam ter uma influência duradoura no mundo
ocidental, especialmente por meio da intervenção estoica. Entre eles, existe o
conceito de cosmopolitismo, o qual está na base da décima primeira proposição
de sua filosofia: o mundo pertence igualmente a todos os seus habitantes,
humanos ou não, e nós, na condição de seres humanos, pertencemos ao mundo
inteiro. Indagado sobre qual seria o seu país, replicou “sou cidadão do mundo”
(DL 6.63). Nessa passagem, esbarramos na mais antiga ocorrência conhecida da
palavra ‘cosmopolita’ (κοσμοπολίτης, ou
kosmopolítes), que significa, literalmente, cidadão do cosmos. Esse termo pode
ter sido cunhado por ele. Em outras passagens das fontes expressa-se a mesma
ideia. Assim, por exemplo, Ibn-Abi’Awn relata que, quando indagado onde ficava
sua casa, a resposta de Diógenes era que sua casa era qualquer lugar em que
pudesse encontrar repouso (...).”
No pensamento cristão também
encontramos defensores de uma sociedade política universal. Para Santo Tomás de
Aquino, ao indicar os caminhos para uma sociedade perfeita, a autossuficiência
seria a propriedade essencial deste tipo de sociedade. Este o objetivo ao qual
tenderiam, na humanidade, as formas políticas. O primeiro bem que uma sociedade
perfeita procuraria garantir - um bem que se confundiria com a sua própria
unidade e a sua vida - seria sua própria paz, tanto interna quanto exterior.
Quando nem essa paz nem a autossuficiência pudessem ser atingidas por uma forma
particular de sociedade - como, por exemplo, a cidade - já não essa e sim uma
forma mais ampla de sociedade - como, por exemplo, o Reino - é que
representaria a sociedade perfeita. Quando nem a paz nem a autossuficiência
pudessem ser a1cançadas por certos Reinos, por certas Nações ou por certos
Estados, é sinal de que já não seriam sociedades perfeitas:[6]
“(...) Nesse caso será, então, uma sociedade mais ampla, definida por
sua capacidade de realizar a autonomia e a paz, que se tornará uma sociedade
perfeita. Em nossos tempos, a sociedade que corresponderá a esse tipo há de ser
a comunidade internacional politicamente organizada. De acordo com os mesmos
princípios, foi sempre sobre uma base moral que os Reinos e os Estados,
enquanto correspondiam nais ou menos ao conceito de sociedade perfeita,
cumpriram suas obrigações para com essa ‘comunidade de todo o mundo’, com essa
sociedade internacional, cuja existência e cuja dignidade sempre foi afirmada
pelos doutores e juristas cristãos, assim como pela consciência comum da
humanidade.”
Ainda no âmbito da procura pela paz
permanente e de um modelo de governo mundial como razão amenizadora ou mesmo
integradora das soberanias estatais, desponta o nome de Emanuel Kant que, no
ano de 1795, fez vir a lume seu ensaio Sobre a paz perpétua. Conforme
lição de Norberto Bobbio em sua obra Direito e Estado no pensamento de
Emanuel Kant [7], este ensaio está fundamentado em quatro
pontos capitais:
“1) os Estados nas suas relações externas vivem ainda num estado
jurídico provisório; 2) o estado de natureza é um estado de guerra e
portanto um estado injusto; 3) sendo esse estado injusto, os Estados têm o
dever de sair do mesmo e fundar um federação de Estados, segundo a idéia de um
contrato social originário, ou seja, "uma união dos povos por meio da qual
eles sejam obrigados a não se intrometer nos problemas internos uns dos outros,
mas a proteger-se contra os assaltos de um inimigo externo; 4) essa federação
não institui um poder soberano, ou seja, não dá origem a um Estado acima dos
outros Estados, ou superestado, mas assume a figura de uma associação, na qual
os componentes permanecem num nível de colaboração entre iguais. Esta
associação limitar-se-ia a uma confederação de Estados e não chegaria, segundo
Kant, a ser um verdadeiro Estado Federal.”
Kant estabelecia, aproveitando um
momento de fragilização das soberanias - não sem uma acentuada dose de otimismo
- as linhas de um constitucionalismo universal, superador das fronteiras
geográficas e simbólicas rigidamente estabelecidas pelo enclausuramento dos
Estados em seus pressupostos de supremacia. Mesmo que para ele os Estados não
devessem se aglutinar para formar um superestado, defendia o ingresso deles
numa Constituição semelhante à Constituição própria de cada um deles, na qual
seria possível garantir para cada membro o seu direito.
Tais perspectivas teóricas acima
mencionadas servem para demonstrar que a aspiração em tela decididamente não é
nova. Embora esta temática venha ganhando fôlego nos embates acerca da ordem
global futura, não são poucos aqueles que se posicionam manifestando descrença
com relação a esta configuração mundial, levantando, entre outros fatores, o
choque entre as civilizações [8]como um dos principais impeditivos de tal integração,
a ocupar a comunidade uma posição adequada a uma situação geopolítica mais
viável e condizente com o gradativo esvaziamento do tradicional conceito de
soberania por ser, ao menos no que diz respeito à Europa atual, um fato
inquestionável.
O achatamento da dicotomia
espaço-tempo, causado, principalmente, pela diminuição das distâncias em razão
do magnífico avanço tecnológico vivenciado nos últimos anos propiciou, entre
outras consequências, uma percepção mais aguda do outro-não-nacional como um ente
concretamente familiar (fator inclusivo), porém necessitando este afirmar suas
peculiaridades étnicas e culturais como um modo de resistência e afirmação de
suas valiosas singularidades.
Nesta esteira, é fato também que
pretensões totalizantes defendendo a viabilidade de um Estado universal vieram
novamente à tona, amparadas e estimuladas, em fins do milênio e neste começo de
século, por dados concretos da existência. Sem dúvida, a defesa do ser humano,
independentemente da ordem jurídica a qual esteja vinculado, como dotado de
direitos humanos e fundamentais inerentes ou indeléveis, tomou novo fôlego.
Independentemente dos exageros teóricos e filosóficos advindos de um mundo em
transformação, a experiência europeia é uma das promessas de estágios ainda embrionários
de desenvolvimento de um modelo de Estado mundial que, por motivações pautadas
no interesse da coexistência entre iguais e extremamente distintos sujeitos de
direito, está lastreado em Constituição voltada à definição de: 1) forma de
Estado; 2) forma de governo; 3) sistema de governo; 4) modos de aquisição e
exercício de poder; 5) institucionalização orgânica dos poderes constituídos;
6) limites jusfundamentais ao funcionamento dos poderes constituídos, cuja
fonte é o ser humano na condição de valor dos valores máximos desta
Constituição geocrática.
II) COMUNIDADE E ESTADO-NAÇÃO
Da mesma forma que podemos negar com
argumentos relativamente sólidos nosso planeta totalmente integrado jurídica e
politicamente, podemos estabelecer ressalvas à ideia de um mundo composto, num
futuro próximo, por uma dezena de comunidades, sem que qualquer destas posições
esteja destituída de alguma verossimilhança. Na realidade, o que temos à
disposição são indícios de uma evolução, e as certezas são poucas. Poucas,
porém significativas.
Quando, por exemplo, detectamos o
Estado-nação como modelo surgido no final da Idade Média, lembramos que este
foi moldado com base na ideia de soberania. Se tentarmos defender a permanência
do significado de soberania no mundo atual como poder que não reconhece nenhum
a ele superior, levando-se em conta o seu duplo aspecto estatal
interno/externo, chegaremos facilmente à conclusão que gradativamente este
poder partilha com a ordem internacional o espaço hegemônico que antes a ele,
teoricamente, pertencia. Neste sentido, Simone Goyard-Fabre desenvolve valiosas
observações:
“Os tratados que, a partir do tratado de Roma, de 1957, instituíram
por etapas a Comunidade Européia (CE), elaboraram e continuam a elaborar um
'direito comunitário' que prima sobre as legislações e até sobre as
constituições nacionais- o que acarreta, por exemplo, em matéria agrícola ou na
área monetária, uma limitação da soberania dos Estados, isto é, de suas
iniciativas próprias nesses setores da vida pública. E essa limitação que
certos autores interpretaram como uma crise. Seria mais justo, parece-nos,
falar de "transferência" de soberania e não de crise. De fato, o que
caracteriza o direito das federações não é a alteração do conceito de
soberania, mas o deslocamento do seu lugar, de modo que cada Estado-membro deve
se dobrará disciplina comunitária.” [9]
De fato, como todo conceito de Ciência
Política, a doutrina da soberania passou por vários desdobramentos e também por
minuciosa revisão. Há juristas, sociólogos e pensadores políticos que entendem
que é um conceito em franco declínio. Hodiernamente, seriam as ideologias
fatores a pesar mais nas relações entre os Estados do que o sentimento nacional
de soberania, produzindo tamanha solidariedade entre os indivíduos de países
diferentes que acabariam por vinculá-los mais estreitamente do que os laços de
nacionalidade? Não assistimos, aqui e ali, a explosão de discursos
neonacionalistas que reivindicam o estabelecimento de limites que garantam a preservação
da cultura nacional e, com o agravamento dos sentimentos xenofóbicos, a não
recepção de refugiados ambientais e de guerra enquanto temerários
não-nacionais, ameaçadores de pretensa estabilidade político-econômica de
certos Estados? Não estariam intensificados, neste ano de 2018, ímpetos
nacionais isolacionistas fundadores de discriminações culturais, étnicas e
barbaramente desumanas?
De outro modo, se a nação, base do tipo
de Estado tratado neste item, entendida como uma comunidade humana, apoiada
numa mesma etnia, língua e cultura, não raro numa mesma história e religião -
conforme registra Manoel Gonçalves Ferreira Filho em seu texto O Estado
do futuro[10]- não mais seria fator determinante de coesão
estatal num mundo globalizado, não subestimemos a nação enquanto ideia-força
apta a mobilizar os sentimentos mais agudos contra o surgimento de uma ordem
planetária em que a nação é comunidade geral de nações (comunidade de
comunidades alicerçada no comum sentimento humano de pertença a um mesmo lar e
locus planetário, único e insubstituível).
III) KELSEN E MUNDIVIDÊNCIA: ALÉM DAS FRONTEIRAS SOBERANAS
Algumas instigantes colocações do
filósofo austríaco Hans Kelsen[11] são úteis para compreendermos os modos
pelos quais os Estados tratam a realidade jurídica exterior às suas fronteiras.
Expõe o autor em sua Teoria pura do direito a oposição entre
duas construções monistas da relação do direito internacional com o direito
estatal; isto é, das duas vias pelas quais, segundo seu ensinamento, se alcança
a unidade gnoseológica de todo o direito vigente, afirmando ele que tal
oposição teria um surpreendente paralelo na oposição que existe entre uma
mundividência subjetivista e uma mundividência objetivista.
Assim, a concepção subjetivista
partiria do próprio Eu soberano para compreender o mundo e, deste modo, não
poderia conceber este como mundo exterior, mas apenas como mundo interior, como
representação (ideia) e vontade do Eu. Deste modo, a construção designada como
primado da ordem jurídica estadual partiria do próprio Estado soberano para
apreender o mundo exterior do direito, o direito internacional e as outras
ordens jurídicas estaduais, e só poderia conceber este direito externo como
direito interno, como parte constitutiva da ordem jurídica do próprio Estado.
Prossegue o filósofo:
“Do mesmo modo que a mundividêncía subjetiva, egocêntrica, conduz ao
solipsismo, isto é, à concepção de que só o próprio Eu existe como ser
soberano, e que tudo o mais existe nele e a partir dele, e, assim, não pode
sufragar a pretensão dos outros entes a serem também um Eu soberano, também o
primado da ordem jurídica do próprio Estado conduz a que apenas este possa ser
concebido como soberano, pois a soberania de um, isto é, do nosso próprio
Estado, exclui a soberania de todos os outros Estados. Neste sentido, o primado
da ordem jurídica do nosso próprio Estado pode ser designado como subjetivismo,
ou mesmo como solipsismo do Estado” [12].
Continuando sua explanação, Kelsen
passa a discorrer acerca da mundividência objetivista. Esta partiria do mundo
exterior real para conceber o Eu - e não só o próprio Eu do observador mas todo
o Eu - e, ao proceder deste modo, não poderia deixar subsistir este Eu como ser
soberano e centro do mundo mas apenas como parte integrante do mesmo mundo.
Na esteira desta perspectiva, Kelsen
elocubra que também a construção do que se denomina por primado da ordem
jurídica internacional estaria partindo do mundo externo do direito, do direito
internacional como ordem jurídica válida, para conceber a existência jurídica
dos Estados singulares. Ao proceder assim, não seria possível deixar que estes
valessem como autoridades soberanas, mas apenas como ordens jurídicas parciais
incorporadas no direito internacional. Finalizando, Kelsen observa:
(..) assim como o conhecimento científico do mundo não é de forma alguma
afectado por aquela oposição, do mesmo modo que o mundo, como objecto deste
conhecimento, permanece o mesmo, da mesma forma que as leis naturais que o descrevem
permanecem as mesmas, que este mundo seja pensado como mundo interior do Eu
quer o Eu seja pensado no interior do mundo, assim também a oposição entre as
duas construções jurídicas não tem qualquer espécie de influência sobre o
conteúdo do Direito, quer do Direito Internacional, quer do direito estadual, e
as proposições jurídicas pelas quais o seu conteúdo é descrito permanecem
as mesmas, quer se pense o Direito Internacional como incluído no Direito
estadual quer se pense este como compreendido naquele. [13]
Kelsen afasta a perspectiva dualista,
que pretende ver no direito internacional e no direito de cada Estado dois
sistemas de normas diferentes, independentes um do outro, isolados um em face
do outro. A concepção dualista para Kelsen seria insustentável, defendendo o
jusfilósofo a inevitabilidade de uma construção monista.
A teoria dualista, exposta
sistematicamente por Heirich Tripel, encontrou repercussão em diversos países e
muitos autores a ela se filiaram, podendo-se citar, entre outros, Anzilotti,
Strup, Walz, Oppenheim, Diena, Perassi, Balladore Palieri e Liszt. Marota
Rangel, em seu texto Os conflitos entre o direito interno e
os tratados internacionais [14] sintetiza suas principais
afirmações de maneira precisa:
“Cisão rigorosa entre a ordem jurídica interna e a internacional, a tal
ponto que se nega a possibilidade de conflito entre ambas. Vontade de um só ou
de vários Estados como fundamento respectivo dessas ordens: relação de
subordinação na primeira e de coordenação na segunda. Distinguem-nas,
outrossim, relações, sujeitos, fontes e estruturas diversas. Constituem-se como
duas esferas, quando muito tangentes, mas jamais secantes. Como conseqüência da
separação das duas ordens: validade das normas internas contrárias ao Direito
das Gentes; impossibilidade de que ordem jurídica possa determinar a validade
das normas de outra ordem; inadmissibilidade da norma internacional no Direito
interno; necessidade de transformação da norma internacional para integrar-se no
Direito. interno, inocorrência de primazia de uma ordem sobre outra, por
constituírem dois círculos que estão em contato íntimo mas que não se sobrepõem
jamais. Separam-se nitidamente, pois, o Estado e a ordem jurídica
internacional. É o Estado - assinalam ainda os adeptos do paralelismo - o
prius lógico do Direito Internacional, de modo que aquele não está para este,
senão ao contrário, o direito internacional está para o Estado.”
Retomando o conteúdo da teoria monista,
podemos afirmar que esta se manifesta como reação à perspectiva dualista, que,
tendo sofrido severas críticas, trouxe à lume um conjunto de explicações,
diversas, acerca das relações entre o direito internacional e o direito
interno. Kelsen, de fato, liderou esta corrente, que teve por seguidores
Verdross, MirkineGuerzévitch, Lauterpacht, e muitos outros. Para o monismo a
ordem jurídica internacional e a interna fazem parte de um único sistema,
havendo equiparação entre sujeitos, fontes, objeto e estrutura das duas ordens,
que se comunicam e se interpenetram.[15]
A teoria monista foi construída sob o
princípio da subordinação, em razão do qual todas as normas jurídicas se acham
subordinadas entre si, numa ordem rigorosamente hierárquica. lmediatidade das
normas internacionais em relação ao direito interno, divergências de grau e não
de essência entre um e outro ramo do Direito, opção imperiosa por uma das
ordens conflitantes são, também, pontos doutrinários do monismo. Seus adeptos
se dividem em duas correntes: uma consagrando a primazia do direito interno;
outra, lutando pela prevalência do direito internacional, como Kelsen.
Neste movimento doutrinário entre
perspectivas dualistas e monistas, é perceptível a transformação profunda que
tem ocorrido no sentido – diante das condições hodiernas da sociedade mundial -
de superação do constitucionalismo provinciano pela transformação apontada por
Marcelo Neves:[16]
“Essa transformação, que procurei demonstrar nesse trabalho com a
análise de casos diversos, deve ser levado a sério. O Estado deixou de ser um
lócus privilegiado de solução de problemas constitucionais. Embora fundamental
e indispensável, é apenas um dos diversos loci em cooperação e concorrência na
busca do tratamento destes problemas. A integração sistêmica cada vez maior da
sociedade mundial levou à desterritorialização de problemas-caso
jurídico-constitucionais, que, por assim dizer, emanciparam-se do Estado. Essa
situação não deve levar, porém, a novas ilusões, na busca de “níveis
invioláveis” definitivos: internacionalismo como ultima ratio, conforme uma
nova hierarquização absoluta; supranacionalismo como panacéia jurídica;
transnacionalismo como fragmentação libertadora das amarras do Estado;
localismo como expressão de uma eticidade definitivamente inviolável. Contra
essas tendências, o transconstitucionalismo implica o reconhecimento de que as
diversas ordens jurídicas entrelaçadas na solução de um problema-caso
constitucional – a saber, de direitos fundamentais ou humanos e de organização
legítima do poder -, que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar
formas transversais de articulação para a solução do problema, cada uma delas
observando a outra, para compreender os seus próprios limites e possibilidades
de contribuir para solucioná-lo. Sua identidade é reconstruída, dessa maneira,
enquanto leva a sério a alteridade, a observação do outro. Isso parece-me
frutífero e enriquecedor da própria identidade porque todo observador tem um
limite de visão no “ponto cego”, aquele que o observador não pode ver em virtude
de sua posição em virtude da sua posição ou perspectiva de observação. Mas, se
é verdade, considerando a diversidade de perspectivas de observação de alter e
ego, que “eu vejo o que tu não vês”, cabe acrescentar que o “ponto cego” de um
observador pode ser visto pelo outro. Nesse sentido, pode-se afirmar que o
transconstitucionalismo implica o reconhecimento dos limites de observação de
uma determinada ordem, que admite a alternativa: o ponto cego, o outro pode
ver.”
IV) O EXEMPLO DA UNIÃO EUROPEIA
A formação de organismos políticos e
econômicos regionais como a União Europeia– apesar da crise do Brexit –
constituem, talvez, uma possível via para a consolidação futura de uma forma de
Estado mundial. Não há como negar que o mundo de hoje, descrito pela expressão
ainda em voga como ‘globalizado’, indica que as relações políticas, econômicas
e sociais envolvem, na quase totalidade, a maior parte dos Estados do globo
terrestre. O achatamento da dicotomia espaço/tempo, causado, principalmente,
pela diminuição das distâncias e agilização das formas de comunicação entre os
indivíduos decorrentes do magnífico avanço tecnológico vivenciado atualmente
propiciou, entre outras coisas, que se intensificasse a percepção do elemento
estrangeiro como um ente familiar (diferente, mas familiar). Pretensões
totalizantes defendendo a viabilidade de um Estado universal vieram novamente à
tona, amparadas e estimuladas, em fins do século passado e início deste, por
dados concretos da existência.
A defesa do ser humano, independentemente
da ordem jurídica a qual esteja vinculado, como dotado de direitos fundamentais
inerentes tomou novo fôlego, muitas vezes refletindo uma visão do homem e um
leque axiológico tipicamente ocidental. Neste sentido, haveria a possibilidade da
humanidade, consensualmente, consagrar valores máximos efetivamente comuns a
todos os povos e indivíduos, capazes de cristalizarem princípios e regras a
serem inscritos em eventual Constituição mundial sob a forma de direitos
humanos fundamentais?
Independentemente dos exageros teóricos
e filosóficos advindos de um mundo em transformação, oferece a Europa um solo
razoavelmente firme onde podemos caminhar para retirar do contexto comunitário,
inspirado preponderantemente em motivações de caráter econômico, elementos que
poderão vir a ser adaptados ao âmbito de eventual comunidade em que o Brasil
estiver inserido.
Chama a atenção o fato de a União
Europeia apresentar-se organizada nem federativamente, nem confederativamente.
Descrita como ‘estrutura comunitária’, esta união de Estados que abriram
parcela de sua soberania combina, numa espécie de neo-federalismo, elementos de
confederação com características de Estado federal. Conforme aponta Manoel
Gonçalves Ferreira Filho em seu ensaio Especulações sobre o futuro do
Estado,
“(...) da Confederação tem ela o caráter de associação de Estados
independentes que aceitam a condução em comum de certos interesses, conquanto
não de todos os de que cuida o Estado. Seus órgãos e serviços são mantidos por
meio de contribuição dos Estados (e não por tributação direta dos cidadãos). A
execução das decisões de seus órgãos faz-se por intermédio da máquina
administrativa de cada Estado. Entretanto, do Estado Federal adota a
deliberação por maioria, o comando (inclusive legiferação) independentemente do
consentimento dos associados, a sujeição dos litigios à Corte judicial da
Comunidade, e, também, o acesso direto de todos os cidadãos a tal Corte, para a
defesa de seus direitos individuais. Esta Comunidade tem como lei suprema não
uma Constituição, mas um Tratado, adotado de acordo com as regras do Direito
Internacional e somente alterável de conformidade com estas. Isto, sem excluir
uma Declaração de Direitos e Garantias diretamente aplicável pela Corte
competente.” [17]
É claro que tão radicais alterações
estruturais trazem problemas, que, no nosso caso, são também percebidos na
seara da teoria da Constituição. Conforme explica Gomes Canotilho em sua
obra Direito constitucional e teoria da Constituição [18]:
“(...) os direitos constitucionais nacionais têm revelado algum desconforto
na compreensão do direito constitucional europeu. De igual modo, a subsistência
do paradigma clássico da teoria da Constituição tem impedido o alicerçamento de
uma teoria da Constituição européia.”
Ainda segundo Canotilho:
“(..) a complexidade política e jurídica criada pela comunidade jurídica
dos povos dos Estados integrados na União Européia lança novos desafios à
teoria da constituição. Esta terá agora de teorizar a 'arte da forma
supranacional' e de fornecer suportes dogmáticos para a compreensão de uma nova
ordem jurídica: I) que cria direitos de aplicação preferente relativamente ao
direito dos Estados-membros e cujos destinatários (sujeitos de direito) são não
apenas os Estados mas também os cidadãos europeus; 2) que possui órgãos e
poderes de decisão supranacionais ("supranacionalismo decisório "):
3) que densifica o princípio constitucional comunitário da integração
supranacional sem deixar de observar os princípios de estatalidade ou
existência dos membros, da autonomia constitucional nacional e da identidade
nacional dos membros europeus; 4) que articula a supranacionalidade normativa e
decisória com a observância do princípio de atribuição especifica de
competências (e não de uma transferência global de competências dos Estados
para a 'União'); 5) que está vinculada a princípios jurídico-materiais e a
princípios de competência como os princípios jurídicos gerais incorporados em
direitos fundamentais comuns aos Estados-membros, o princípio da
subsidiariedade e o princípio da coesão social.”[19]
V) NACIONAL/REGIONAL/MUNDIAL
Segue a tendência progressiva do Brasil
em integrar, apesar das enormes dificuldades, atropelos e retrocessos, via
Mercosul ou qualquer outra forma de integração regionalizada, um complexo
equiparável à União Europeia.
Ao se interpretar o Tratado do Mercosul,
chama a atenção sua ambição em sinalizar para a uniformização legal dos seus
signatários, em diversas áreas de possível interesse comum, na direção da
consecução de um verdadeiro direito comunitário de caráter supranacional. Tais
propósitos coincidem com a experiência paradigmática da União Europeia e
assinalam a intenção de rever extensamente o sentido e o alcance da soberania
dos Estados do Cone Sul. Ocorre que a despeito dos reconhecidos propósitos de
caminhar na direção da supranacionalidade, o Mercosul ainda exibe evidente
incipiência no balizamento do itinerário que tenciona percorrer com vistas a
este objetivo.
Deste modo, cogitar a possibilidade de
um Mercosul federalizado (ou, melhor dizendo, comunitarizado) é antes de mais
nada apontar os impasses econômicos, sociais e políticos aos quais seus membros
integrantes deverão ultrapassar para que possam futuramente encontrar um
equilíbrio dinâmico de forças como progressivamente verificamos no âmbito da
União Europeia.
Os recentes desajustes das economias
dos dois sócios maiores do Mercosul, Brasil e Argentina, demonstram que ainda
resta muito a fazer, como estabilização das economias, harmonização das
principais legislações (defesa do consumidor, área tributária, reforma do
Estado), apoio às micro, pequenas e médias empresas; marcas e patentes; normas
técnicas; política agrária e outros campos mais.[20]
De outro modo, pensar a federação (em
termos renovados) em blocos regionais é também pressupor uma adequada divisão
de competências entre o poder central destes blocos e seus integrantes,
tendo-se em vista o equilíbrio de forças entre os seus componentes, que se
reúnem primordialmente voltados para o desejo de cooperação, e não de
subjulgamento. Assim, conjeturar a transição do Estado federativo brasileiro
para uma ordem federativa regional e, quiçá, mundial, sopesando as dificuldades
conjunturais inerentes aos países do Cone Sul, poderá vir a ser uma das questões
primordiais a serem desbravadas num futuro próximo.
Queremos dizer com isso que devemos
caminhar rumo a uma integração de mundividências subjetiva e objetiva,
integrando, desta forma, as duas concepções monistas opostas, com a mitigação
da concepção dualista. A mundividência subjetiva - egocêntrica conforme já
mencionada, conduz ao solipsismo, quer dizer, à concepção de que só o próprio
Eu existe como ser soberano, e que tudo o mais existe nele e a partir dele.
No contexto da comunidade do
Estado mundial, faz-se necessário repensar tanto os conceitos clássicos
atinentes à teoria da Constituição, como a velha dicotomia poder
constituinte/poder constituído, defendendo-se que o que é comunitário não quer
dizer comum em um sentido de plena identidade ao que antes era distinto.
Caminharíamos gradativamente para o
âmbito de sujeição dos Estados a uma autoridade maior de onde poderia resultar
a longo prazo o Estado mundial, conforme nos sugere Manoel Gonçalves Ferreira
Filho em seu clássico Curso de direito constitucional [21]? O que concretamente estaríamos
verificando na ordem atual, de acordo com determinadas afirmações, seria a
complementaridade do Princípio de Globalidade no tratamento de problemas
planetários e do Princípio de Subsidiariedade, que reservaria às instâncias
nacionais, regionais ou locais o tratamento de problemas específicos.
Se considerarmos o caso da Comunidade
Europeia, verificamos, pela consagração na tratado de Maastricht, a eleição do
Princípio de Subsidiariedade, que determina o modo pelo qual se operará na
comunidade a divisão de tarefas.
Ao transplantar-se a forma federal para
um contexto internacional, ainda de acordo com esta ordem de ideias, seria
possível inclusive conjeturar um tipo de federalismo internacional-cooperativo,
que levaria à coordenação das esferas locais com as esferas globais sob
inspiração dos princípios acima mencionados.
Se num primeiro momento tais
considerações indicariam uma realidade distante de ser consumada a curto prazo,
já que uma ordem internacional efetivada seria decorrência madura de um
processo crescente de integração e conformação dos Estados aos blocos
regionais, sena possível destrinchar da realidade destes mesmos blocos
político-econômicos tendências que nos sugeririam a constituição de uma
federação planetária, o que nos leva novamente às indagações formuladas logo na
introdução do presente texto, restando em aberto a possibilidade de tal
hipótese vir a se confirmar.
No entanto, supomos que defender a
perpetuação do ideário federativo neste transtópico Estado mundial é ser
coerente com o movimento de contraposição à forma absolutista e férrea de
Estado unitário, monárquico e centralizado, mantendo-se a integridade de seus
membros, elegendo-se como valor maior a vida planetária e a liberdade das
instituições e dos cidadãos internacionais, afirmando-se as bandeiras do Estado
de Direito, do regime representativo, da legitimidade e do poder responsável,
resguardando-se a autodeterminação política, social e econômica das sociedades
livres e atuantes.
Assim, divisaríamos condições para que
a crescente experiência das integrações regionais tenha, como matéria prima, a
autonomia que cada unidade se reserva. Com efeito, a sociedade contemporânea
tem como um de seus agentes de ponta os que trabalham para a constituição de um
território de entendimento nos vários níveis, em que a preocupação com o uno
cede ao compromisso com o múltiplo, com as diferenças.
É por esta via que a Federação
encontraria sua formulação apropriada aos novos tempos. Conforme nos indica
Paulo Resende em sua obra Desafios da globalização[22], " a Federação passará a ser
entendida não como fragmento do todo, mas enquanto intersecção". Segundo
ainda suas palavras:
“(...) a grande novidade que surge, a postular a nova ordem internacional
federalizada, não hierarquizada, é o fato de estarmos submetidos à
simultaneidade eletrônica que, à primeira vista, leva à indiferenciação da nova
ordem mundial, leva ao mundo equalizado pelo simultâneo e pela aceitação
pasteurizada do que se difunde dos centros tecnológicos. Mas, simultaneamente,
estamos diante da diversidade, que nos é mostrada pelo mesmo canal, trazendo à
tona diversidades intersecionadas, sem nenhum apelo arcaizante à solidão
local.”
A União Europeia, iniciada como uma
forma de integração político-econômica da Europa, avançou tanto na direção da
supranacionalização de suas decisões que é possível encontrarmos afirmações de
que ela teria passado a se constituir em uma verdadeira federação.
Independentemente de concordarmos ou não com esta colocação, destaca-se a
importância de se verificar a natureza deste bloco regional. Sem querer a
redundância: seria mesmo uma nova federação? Seria viável falarmos em
confederação? No entanto, em meio a tantas dúvidas que a Comunidade Europeia nos
oferece, resta uma lição fundamental e da qual dependem todas as outras: a da
soberania relativa de seus membros.
CONCLUSÃO
Nesta altura de nossas reflexões,
inevitavelmente nos deparamos com um amplo leque de questões que podem surgir
do advento de uma eventual Constituição transnacional, enquanto fator
jurídico-político organizador supremo, com disposições pétreas, dos novos modos
de agrupamento entre pós-Estados. Como ficariam os tradicionais conceitos de
poder constituinte originário e poder derivado à luz desta realidade? E como
adequadamente seriam organizados os modos democrático-procedimentais de
escolha dos agentes dos poderes constituídos? Em franca consonância com novas
dinâmicas do princípio da subsidiariedade? O próprio conceito de revolução no
sentido jurídico, na condição de momento autorizador da manifestação do poder
instaurador da nova ordem, como se adaptaria a este contexto de etopia mundial?
Questões inerentes ao regime democrático, como a legitimação do titulares do
poder, como poderiam ser respondidas à luz destes incorpóreos contextos? A
Europa nos lança as pistas, mas ainda é pouco. Pouco pelo fato de estarmos
testemunhando os efeitos de uma crise econômica mundial que, desde 2008,
parece, sobretudo após seu agravamento em 2011, colocar em xeque o modelo
estrutural da União Europeia. Talvez não seja precipitado concluir que a União
Europeia apresenta uma complexidade em termos de identidades locais e nacionais
calcadas em elementos tradicionais do modelo Estado Moderno, tais como
soberania e território que perderiam sua razão de ser, complexidade ainda mais
grave ao projetarmos, a partir dos modelos de integração regional, um modelo de
governo mundial, neste breve estudo tenuamente cogitado em exercício de
transtopia poética e algo realista.
REFERÊNCIAS
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global. São Paulo: Max Limonad, 1999.
1 Direitos humanos e globalização in Direito global, p. 196 .
2How to think about war and peace, p. 228-229.
3 P.221.
[4] Discurso de abertura da I Sessão Ordinária da Assembléia Geral da
Organização das Nações Unidas, proferido em Londres, em 10 de janeiro de
1946
(http://bugiosepapagaios.blogspot.com/2012/11/i-sessao-ordinaria-da-assembleia-geral.html).
[5] NAVIA, Luis E. Diógenes, o cínico. São Paulo: Odysseus, 2009.
[6] MARITAIN, Jacques. O homem e o Estado. Rio de Janeiro: Agir, 1959, pp. 229-230.
[7] P.160
[8] Segundo estudiosos, como Samuel Huntington (O choque das civilizações), as diversas culturas mundiais existentes, que não seriam absorvidas pela cultura dita "ocidental", já que estariam em processo de refortalecimento, serviriam como critério de composição dos complexos comunitários, em grande parte pela dinâmica de atração-repulsão verificada nas relações entre civilizações como a islâmica com a ocidental (HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações. São
Paulo: Objetiva, 1997).
[9] Os princípios filosóficos do direito político moderno, p. 464.
[10] P.106
[11] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, Coimbra, Armênio Amado
Editor, 4. Ed., 1976, p.4.
[12] Hans Kelsen, ob.cit., p.458.
[13] Hans Kelsen, ob. cit., p. 459
[14] Vicente Marotta Rangel, Os Conflitos entre o Direito Interno e os
Tratados Internacionais, in Boletim da Sociedade Brasileira de Direito
Internacional, Rio de Janeiro, 1967, pp. 29-64.
[15] Vicente Marotta Rangel, ob.cit., p.33
[16] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p. 297.
[17] Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Especulações sobre o
Futuro do Estado, in O Estado do Futuro, São Paulo:
Pioneira, 1998, p.I 06.
[18] Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, Lisboa: Almedina, 2. ed., 1998, p. 1220.
[19] Gomes Canotilho, ob. cit., p.1224.
[20] Freitas Jr., Antônio Rodriguês de, Globalização, Mercosul
e Crise do Estado- Nação. São Paulo: LTR, 1997.
[21] P.47.
[22] P.40.
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