ENTRE ACASO E NECESSIDADE: "O ANDAR DO BÊBADO" E OS CÁLCULOS DA INCERTEZA
Leucipo (cerca de 450 a.C.), atomista grego, afirmou que nada acontece em vão, mas tudo acontece por determinação de uma causa e de uma necessidade. No âmbito da Lógica, os desdobramentos destas proposições relacionam-se à clássica noção de "razão suficiente": nada acontece que não tenha uma causa ou, pelo menos, uma razão determinante de ser. No entanto, por mais que casual e causalidade pareçam antagônicos, o acaso não é ausência de causa. De fato, as acepções mais cuidadosas indicam - independentemente das situações que, por ignorância ou confusão do homem determinado evento foi imprevisível - o acaso enredado em causas ou na insuficiência de probabilidades no tocante a determinada previsão (deste modo, o acaso é um forma de determinação, só que imprevisível).
Para nos valermos de um exemplo - e exemplos de ordem empírica e cotidiana se multiplicam no decorrer da obra objeto desta resenha - se de um lance de dados resultar o número cinco, é válida a conjectura de que inúmeras causas concorreram para este evento (por exemplo, massa e forma do dado ou superfície da mesa onde foi atirado), causas estas, no entanto, independentes da vontade do jogador para que ele tenha condições efetivas de escolha ou previsão do resultado. Assim, a tão propalada "obra do acaso" tem causa ou causas que, no entanto, escapam de controles e intenções.
Na história da Filosofia, as problemáticas acerca dos embates especulativos entre acaso e necessidade encontram nas reflexões de filósofos implicações das mais relevantes, constatáveis, no devir histórico das idéias, na verificação de arcabouços teóricos que validavam os determinismos de caráter teológico e/ou cientificista, ambos negadores de um mundo que também recepciona o aleatório e o incerto (citemos a visão determinista de mundo que predominou na Europa durante a Idade Média, alicerçada na crença de que tudo acontecia sob o comando do Criador. Em outra época, encontramos o filósofo Thomas Hobbes sustentando que todos os eventos eram predeterminados por Deus ou por causas extrínsecas determinadas por Deus: ou seja, tudo provinha da necessidade, sem espaço para o acaso). Se seguirmos, de outra banda, as lições de David Hume ou Charles Peirce, aceitaremos a concepção de que o acaso consiste na equivalência de probabilidades que não permitem uma previsão positiva em um sentido ou outro, o que contribui para o enfraquecimento de tendências fundadas na crença de que tudo no mundo acontece por necessidade.
Atualmente, conhecimentos das mais variadas procedências epistêmicas interagem na denominada "Ciência da Incerteza", que reúne, além da Matemática, a Psicologia, a Psicanálise, a Ciência Cognitiva, a Neurociência, a Lógica, entre outros saberes que contribuem para a investigação de fenômenos variados, dos econômicos aos jurídicos, dos astronômicos aos comportamentais lastreados em probabilidades ou graus de possibilidade passíveis de cálculos que lidam com o previsto e o imprevisível.
Esta "ciência de ciências" é o principal fundamento estruturante da obra O andar do bêbado, de Leonard Mlodinow, também autor, entre outras, de Uma nova história do tempo, com Stephen Hawking e O arco-íris de Feynman. O livro de Mlodinow, versátil professor do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), apresenta, entre diversas qualidades, a investigação do aleatório presente em nossas vidas. O autor esclarece que muito do que nos acontece - êxito na carreira, nos investimentos e nas decisões pessoais, grandes ou pequenas - resulta tanto de fatores aleatórios quanto de habilidade, preparação e esforço, para concluir que a realidade que percebemos não é reflexo direto das pessoas ou circunstâncias que a compõem. Pelo contrário, explica Mlodinow, é imagem borrada pelos efeitos randomizantes de forças externas imprevisíveis ou variáveis.
Por outro lado, o autor realizou freqüentes abordagens sobre a importância da Matemática como ciência indispensável - principalmente face a evolução dos cálculos de probabilidade - à exploração metódica das peculiaridades estatísticas do acaso e do aleatório. Jogos de azar são estudados pelo autor como sérias referências para o desenvolvimento de trabalhos que hoje compõem relevantes análises racionais do casual e da incerteza - tais como O livro dos jogos de azar, do italiano Gerolamo Cardano (séc. XVI), jogador e espírito renascentista, que demonstrou que as chances de dar cara quando duas moedas são lançadas não são três (zero, uma ou duas caras, cada uma com chances iguais de um terço) mas quatro (cara-coroa, coroa-cara, cara-cara e coroa-coroa), com 50% de probabilidade do resultado sair cara, 25% de sair duas caras e 25% de nenhuma.
O título do livro de Mlodinow expressa uma analogia que descreve o movimento aleatório dos trajetos seguidos por moléculas ao flutuarem pelo espaço chocando-se sem cessar com suas moléculas irmãs, fenômeno que para o autor serve de metáfora para descrever muitos dos acontecimentos da vida diária. De fato, o autor ilustra, com grande capacidade didática, o papel do acaso no mundo que nos cerca, demonstrando, pelas constantes incursões nas searas, por exemplo, da Economia, do Direito, da Física, da História e das mais diversas áreas da atividade humana (esportes, negócios, lazer...) a relevância de detectarmos a atuação do aleatório nas questões humanas, ao tomarmos conhecimento dos princípios que governam o acaso e, sobretudo, dos processos que nos levam a julgamentos equivocados e decisões ruins.
(A pintura que acompanha esta postagem é de Lucia de Souza Dantas)
Comentários