PREFÁCIO DE RELATÓRIO SEM CONTAS E POSFÁCIO DE FAUVES, DE PAULO FERREIRA DA CUNHA
O ETHOS E A LIRA EM 'RELATÓRIO SEM CONTAS',DE PAULO FERREIRA DA CUNHA
(Prefácio)
Entre
estro e sophia, a poética-cívica de Paulo Ferreira da Cunha se revela por meio
de contundentes imagens, ricas sonoridades e densas reflexões, configurações de
um ethos poético transmutado em bela e prudente lira que o
insigne filósofo e professor tange com extrema competência netas páginas,
assumindo, embora “que um autor não se confessa” (Coisas Elementares), a poesia como forma de tradução estética de
sua jornada pelo caminho das escolhas e deliberações morais.
Poeta que
na agoridade caminha pela senda do amor à sabedoria, assume a ironia lírica
como método dialógico em autêntica ‘poemaiêutica’ propiciadora no leitor da
parturição de impressões sinestésico-especulativas e de interpretações que
atiçam sua sensibilidade, leitor e
indivíduo contemporâneo potencialmente prudente que oscila e sofre entre
a angústia produzida pela trágica morte nietzschiana de Deus e as esboroadas
esperanças neste tenebroso não amoroso começo de século.
Provoca o
bardo questionamentos éticos a partir do ponto de vista de quem observa e vive
o mundo onde fazer a coisa certa exige a melhor decisão-ação de quem aceita o
inevitável desequilíbrio, sapiens malabarista submetido a contínuas exigências
para conciliar os contrários e contraditórios no âmbito de um outrosimesmo,
cujo centro moral não é estático, mas está em contínuo movimento, adaptando-se
às contínuas e mutáveis exigências éticas do mundo da vida.
No
entanto, por mais que a Filosofia permeie o rol dos poemas reunidos nesta bela
obra, não realiza Paulo Ferreira da Cunha ‘filosofia poética’ em Relatório, mas produz poemas que intensa
e esteticamente deleitam, comovem e, naturalmente, por estarmos também diante
da obra de um poeta-mestre, ensinam, criticam e problematizam.
Poemas por
vezes assumidamente autobiográficos, que organicamente integram esta obra-ethos, em que as dimensões morais subjetivas
e objetivas, fáticas e normativamente referidas, são amplamente absorvidas
enquanto férteis matérias primas para poemas que também são memória, dilema,
provocação intensa.
Torna o artista a categoria do erro matéria poética, e impele o leitor a
reconhecer em si seus dilemas e desalinhos ético-morais, em obra que evidencia
mais a recepção da falha aristotélica (hamartia),
do que especulativamente centrada no pecado religioso, embora não deixe de
comparecer em vários dos poemas certas tensões teológicas que alimentam boa
parte das agudas estrofes do livro. Neste sentido, fiquemos com os belos e
contundentes versos do autor:
“(...) Houve um erro qualquer na minha vida
Algures quebrou um carril
Um ficar que era partida
Ou uma errada ida
Uma má ida ou mil.
Uma escolha errada,
Uma amizade falsa
Uma má cartada
Um tango que era valsa.”
(Houve um Erro)
Este poema atesta uma das maiores
qualidades de Relatório sem Contas,
que é a autonomia do poema na condição de construção autônoma, de ente
singularizado, irredutível e irrepetível,
a honrar as palavras de Octavio Paz, para quem o poema é caracol “onde
ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos,
da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo,
monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e
impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e
vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem
afirme que não tenha nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela
prova da supérflua grandeza de toda obra humana! (Octavio Paz, O Arco e a Lira).”
Por mais
que determinados poemas revelem alta voltagem ético-especulativa, em momento
algum deixa Paulo Ferreira da Cunha de praticar, com equilíbrio e maestria
artística, a lição de Aristóteles, que em sua Poética alertava que nada há de comum, exceto a métrica, entre
Homero e Empédocles (o estagirita chama de poeta o primeiro e de filósofo o
segundo). Entre poemas que implicam aidikia
e virtude, o autor assume a condição de aedo e poeta-crítico,
valorizando ora a linguagem mais próxima da informal oralidade, ora um modo de
construção mais assumidamente metalinguístico acerca do fazer poético,
retornando à Hélade para nela ainda encontrar o alimento ético-espiritual
necessário em momentos de desencantamento extremo do mundo e de fragilização
intensa dos afetos, enquanto recrudesce a intolerância e as condutas humanas
odientas pautadas em fundamentalismos políticos, morais, religiosos,
globalizados real e virtualmente.
Poeta que
adentra a ágora trilhando a aretê e
que não aceita a expulsão de Homero da República – a rima também serve ao político
e ao jurídico – propondo ao leitor salutar retorno a si mesmo como
possibilidade catártica de um sujeito cindido, quem sabe encontrando na música
o lugar da concórdia e da amizade, do encontro festivo e do abraço. Neste poeta
plenamente luso-brasileiro, neste fazedor de pontes entre culturas e povos,
neste poeta cidadão do mundo e defensor dos valores máximos da vida, a música
surge convidativamente e lindamente versada:
“Violão, viola
Enleia o meu fado
Chorinho consola
Modinha já rola
Vem canta a meu lado.
As cordas são laços
E o braço a canção
Maior vibração
Não terão abraços (...)”
(Tocata)
Outrossim, em Culpa Nossa, o
poeta elabora a temática acerca dos usos e abusos do livre arbítrio com relação
a um sujeito ético que se sabe quem deve suportar as consequências de seus
pensamentos, palavras, omissões e sobretudo atos, estes que ou se transformam
em hábitos de pessoa justa ou apontam
para o desequilíbrio do sujeito abismado em subjetividade solar ou sombria,
senhor ou escravo do que deseja, artífice de um caráter que cambaleia entre o
certo e o errado, o torto e o direito:
“(...) Não é culpa nossa -
Mais dieta menos ginásio -
Mas a alma, senhores
A alma é toda
Culpa nossa
Muito Culpa nossa
E só nossa.
Miserere Nobis.”
(Culpa Nossa)
Por
outro lado, inventa o autor poemas que, efetivamente, portam a melhor poesia.
Tocante e provocativa poesia que enquanto embala nossos sentidos com seus
ritmos, sonoridades e imagens, aguça a razão ao questionar os limites e
possibilidades da ação virtuosa em tempos contemporâneos de trágicos simulacros
e desnorteamentos axiológicos:
“(...) Entre o perdulário e o avarento
Entre o libertino e o cristalizado
Não haverá um sentimento
Minimamente são e equilibrado?
O problema é que cada qual
Pensa que é ele afinal
O mais prudente e o mais moderado.”
(Virtude no Meio)
Em
tempos de nefastas consequências ao mundo e ao homem geradas pela amoralidade
de sistema econômico alimentado por desenfreado homo consumens de liberdade
sobredeterminada por maléficas manipulações retóricas e doentias dos desejos, o
poeta toma o partido da prudência, diante da radical e contínua autonomização
do indivíduo hipermoderno que talvez realmente não saiba mais em nome de que ou
de quem agir moralmente, em uma época em que o poeta tenta encontrar via estro
os nexos de um momento histórico caracterizado pelo franco esgotamento e
desaparecimento das grandes narrativas de legitimação, destacadamente a
narrativa religiosa e a narrativa política, como ensina Lyotard em A Condição Pós-Moderna.
Na condição de poeta-texto, o autor se realiza e se transforma em obra
densamente carregada de inequívocas influências de filosofias práticas, de
éticas e vivências que traduz em estrofes e versos que descortinam o
claro/escuro de seu caminho, demonstrando extrema competência rítmico-melódica
e textualidades ricas em difusas nuances ético-existenciais via uma poiésis que integra o geral ao singular
e ao plural, a experiência interior com os anseios por uma humanidade
consciente da hipocrisia por ela mesma gerada e que literalmente mascara a
exigência de novos pactos éticos e morais para o enfrentamento de desafios de
caráter mundial.
Nesta bem
urdida reunião de poemas que conduzem o leitor ao enfrentamento de suas sombras
e tormentos, é no diálogo propiciado pelo poeta-que-ensina que a fértil e polifônica obra leva, entre encantamento e
juízo, o leitor a indagar por quais razões ele reitera e reiteramos nossos
erros e desmesuras diante de antigas lições que nos ensinam a evitar a hybris, conhecendo a nós mesmos e nos
tornando quem somos (porém, à luz de um sujeito transeunte eticamente
responsável que sabe que não é, sendo). Entre encantamento e juízo, o leitor
também participa de relatos acadêmicos do poeta que circula entre esferas
diversas da vida social, polivalente pensador das agruras do ser que ao qual se
exige ser ético mesmo diante da morte e da corrupção temporal:
“(...) Cada grão de areia
É pedra no caminho
É furo na engrenagem
Cada grão de areia
É menos tempo de vida
E mais deserto
Que engole o mundo.
(Relatório da Ampulheta)
Do
título do livro de Paulo Ferreira da Cunha depreende-se, embora elíptico, o
dever de prestar contas a si mesmo, sujeito que, não mais servo de suas
demasias, conta prazerosamente e produz a métrica do ‘inutensílio’ poético,
livre de cifrões e subversivamente sempre urgente. Nesta trajetória
ético-poética que o autor brilhantemente realizou, somos presenteados pela
forte e tão bem - vinda alta poesia de Paulo Ferreira da Cunha recolhida neste
Relatório sem Contas.
São Paulo, março de 2016
FEROCIDADE POÉTICA
(Posfácio para 'Fauves, de Paulo Ferreira da Cunha)
Em
seu novo livro de poemas, Fauves, Paulo Ferreira da Cunha nos convida a trilhar os
caminhos de uma selva de perturbadora beleza que, tingida com contrastes de chiaroscuro, leva o leitor a percorrer
uma obra de vibrante fanopeia e logos de acentuada ferocidade poética. Entre
luzes e sombras, por meio das seções ‘destinos’, ‘coisas’, ‘tempos’, ‘ações’,
‘lugares’ e ‘figuras’, o poeta devolve à Filosofia à melopeia perdida e a
decanta em versos que atestam efetivas e densas fusões ético-líricas. Os poemas
de ‘Fauves’ comovem e deleitam, mas sobretudo revelam ao leitor como tornar-se mais
um entre ‘as feras soltas na cidade’. Neste sentido, o autor deste livro é
indignado etopeu que, diante de um planeta assolado por fundamentalismos e
obscurantismos diversos, insiste em se valer da palavra como veículo de
problematização e transformação de uma existência humana que, em tempos
hipermodernos, padece com o trágico desencantamento do mundo.
Tal
qual Diógenes que escancarava com suas palavras e gestos uma vocação cosmopolita
voltada à afirmação de uma radical liberdade cínica, o poeta-fera, inspirado
também pelos quadros que criou e expôs recentemente na cidade do Porto, busca o
homem e o encontra tristemente fragmentado pelas vicissitudes de uma vida que,
hodiernamente, embrutece e desnorteia moralmente o indivíduo. De fato, os
poemas de ‘Fauves’ não trazem suavidade nem candura. São, muito pelo contrário,
frequentemente dotados de áspera poeticidade denunciante de uma realidade de
ódios latentes ou mesmo manifestos, perante
ações de intolerância e desprezo perpetradas contra a dignidade do próximo ou
distante e que se multiplicam mundo afora:
“(...) Enquanto o coração duro
só
bater ódio e veneno
o
mundo, pensado ameno,
continuará
breu escuro.(...)” (Os
suficientes)
‘Fauves’ é livro para ser
desfrutado sob a égide do ‘tempo oportuno’ (kairós),
texto que não se compreende na esfera de temporalidade tão-somente cronológica,
mas que se aprecia tanto mais ao aceitarmos o compromisso de, ao sermos tocados
pela magia catalisadora de seus versos, sermos capazes de - melhores do que
fomos antes de sua leitura - atuarmos na agoridade, entre acasos e fortunas que
a fúria poética do bardo retrata nos poemas de ‘Destinos’, capítulo inaugural
da obra, ou mesmo na seção intitulada ‘Tempos’, em que o poeta lamenta não
apenas o tempo perdido, mas o que, em tempos idos, dava o testemunho de uma
humanidade grandiosa e heroica (esta mesma que recebe na obra, também pelo
desconcerto do mundo atual, cores pálidas de pessimismo gris):
“(...) Na Obra a fazer, toda a atenção absorta!
O
resto é distração, é esbanjamento!
Concentra-te
pois neste momento
Rumo
está aí, o resto não importa.(...)”
(Confissão
do Titã)
“(...) Não penses mais, amigo. É que ele há Sorte:
Um
Destino é a lei, pr'a fraco ou forte.(...)”
(Moira)
“(...)Houve
tempo em que acreditamos
que a Terra era povoada por Pessoas,
e que essas Pessoas, com esforço,
com dedicação, com rasgo,
Podiam ser excecionais,
e
mais que tudo Humanas.(...)
(Houve
Tempo)
Diante
da inevitável Átropos que, inflexível, rompe o fio da vida, o poeta ruge e
propõe, inconformado, uma nova ética ao vivente que saiba reagir às agruras de
uma época de amores liquidados e líquidos. Ao falar em esperança perdida, ao
cravar que inexistem praias salvadoras, o vate, entre fios de destino e jogos
de dados, ainda acredita na mudança de rumo dos passos ou mesmo no surgimento
de um novo sujeito, embora livre de todos os desejos:
“(...) Conforma-te
à Fortuna e seu império.
E um dia, talvez, perdida há muito a Esperança,
Pode ser que sejas surpreendido, enfim.
E haja mudado o rumo de teus passos.
Mas isso não é contigo.
Talvez
até já sejas outro, não tu mesmo.(...)”
(Zerar)
Em
‘Coisas’, com maestria, Paulo Ferreira da Cunha explora as polissemias da
expressão que dá nome ao capítulo para atentar não para aquilo que isoladamente
existe, mas para o que há ou possa existir, de maneira corpórea ou incorpórea,
em direta implicação com o ser que a cria (também coisa por ser objeto que é
consumido e que se descarta, barbaramente, em tempos infelizes e lassos), este
a quem se nega ser valorizado um a um, na condição de pessoa e valor fonte de
todos os valores ou na dimensão de sujeito ético que, frente às coisas da vida,
deveria ser capaz de bem decidir, criando e recriando as coisas que realmente importam,
independentemente de seus predicados econômico-materiais:
“(...) Ele há coisas que devem o ser
a
nulos nadas de um acaso
Mas
noutras tudo vem ao caso
E
estão para viver e para valer.(...)”
(Ele
há Coisas)
“(...) As coisas, as coisinhas, ah que
coisas,
São nadas em que tua alma poisas. (...)
(Coisificação)
Denunciando
mentiras e lamentando os enganos em um mundo que se precipita no abismo do
descaso, da ignorância, da irresponsabilidade, o autor de ‘Relatório sem Contas’,
na seção denominada ‘Ações’, entre outros tantos belos e provocativos poemas, enaltece
a inteligência e o conhecimento para criticar as condutas erráticas e frívolas do
homem contemporâneo: “(...)Lancei repto fremente à Inteligência /Em tempo de ameaças e barbáries./
Como uma prece, nestas intempéries:/ "Que se levante e de si dê ciência!(...)”(À
Inteligência); encoraja a busca da fraternidade (apesar dos
muros invisíveis que apartam e segregam as pessoas), precisamente por serem as
realidades de cada um mundos paralelos, distintos: “(...) Tem de se fazer um esforço/ de
fraternidade, /precisamente porque/ não sentimos/ nem pensamos /nem vivemos da
mesma sorte(...)” (Necessária Fraternidade) e incita
a se fazer algo depressa (mesmo que não se saiba o que seja): “(...) Desafios hoje não chegam de bandeja/
nem há no horizonte uma promessa/. Mas há algo a fazer, pois ora essa! (...)”.
Há um sentido de urgência nos poemas deste capítulo, mesmo que o poeta-filósofo
preceitue e previna que “(...) é preciso discernir /Quando se deve falar /E
mesmo gritar, rugir, E quando há que calar.(...)” (Falar ou não Falar).
Em ‘Lugares’ e ‘Figuras’, Paulo
Ferreira da Cunha novamente oferece ao leitor poemas ricos em matizes capazes
de traduzir o caráter sombrio e luminoso da natureza humana. Nos versos de
‘Castelo’, o poeta é o firme guardião da inexpugnável fortaleza que protege o
que há de mais valioso nas vidas desses cadáveres adiados que procriam:
“(...) É a fortaleza altaneira
onde se guarda o bem,
o carinho, a amabilidade,
os sorrisos e a inteligência
e sobre todos o Amor
triunfa,
hasteando a sua flâmula
luminosa
na
torre mais alta.(...)”
Por outro lado, o poeta não poupa a humanidade de severos
juízos (esta que, absorta pela ilusão, erra ao tomar a nuvem por Juno, vagando
em falsa liberdade, prisioneira que é de sua cega desmesura, criminosa vítima de
seus desejos frívolos):
“(...) Em vacuidade total
Lá por dentro nada tem
Daí um ar de desdém
Ser seu escudo normal.
Muito palrar sem sentido
Muita festa e social
Discurso? só repetido
Nada vero, nada querido,
Agitação mundanal:
Eis o ser superficial. (...)”
(Homo Superficialis)
Parabenizo o poeta maior Paulo Ferreira da Cunha por esta obra que, ao enriquecer
nossas Letras com versos urdidos com talento, competência e sensibilidade extrema,
tem entre seus principais méritos o de relembrar a existência de coisas
sagradas e intocadas, que devem ser protegidas e afirmadas mesmo que devamos
nos valer de ira santa ou que tenhamos que agir movidos por fúria cívica, feras
não mais cativas porquanto livres e protetoras da cidade:
“(...) A
paciência
dos pacientes
e dos calmos
dos moderados
e conciliadores
é algo com limites.
Não queiramos saber
o que é a fúria dos Aquiles.(...)”
(Voltando a Aquiles)
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